domingo, julho 29, 2007


CANÇÃO-do-mar.

Numa luta de gregos e troianos
Por Helena, a mulher de Menelau
Conta a história que um cavalo de pau
Terminava uma guerra de dez anos
Menelau, o maior dos espartanos
Venceu Páris, o grande sedutor
Humilhando a família de Heitor
Em defesa da honra caprichosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor

A mulher tem na face dois brilhantes
Condutores fiéis do seu destino
Quem não ama o sorriso feminino
Desconhece a poesia de Cervantes
A bravura dos grandes navegantes
Enfrentando a procela em seu furor
Se não fosse a mulher mimosa flor
A história seria mentirosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor

Virgulino Ferreira, o Lampião
Bandoleiro das selvas nordestinas
Sem temer a perigo nem ruínas
Foi o rei do cangaço no sertão
Mas um dia sentiu no coração
O feitiço atrativo do amor
A mulata da terra do condor
Dominava uma fera perigosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor

SINTONIA.

Repara.
Falaste tanto que eu precisava me abrir.
Deixar o mar acontecer,
a água invadir...
Quero fechar as comportas (novamente!)
Tudo!
Como é que se faz
pra conter toda essa
torrente?
Esse oceano que transborda,
sem dar tempo de algo secar no varal da vida?
Nesses dias que eu, náufraga em maré alta,
de porta-pra-rua e enchente no batente,
lembro tanto de você...
Nessa noite, e em algumas atrás,
acordo assim... sobressaltada,
assustada,
no sonho, em algum lugar
você chorava.
VOCÊ!
Ah, você me chamava, buscava minha mão,
ansiava por mim.

Lembro da lição apreendida
EXPIRE. EXPIRE. EXPIRE.
Pra não se afogar.

(Devia era ter lacrado a fechadura)

... e justo você chorava...
sonho bobo, pressentimento besta
você, que consegue contar nos dedos
quantas vezes derramou lágrima..
Sonhei com a ilusão de que havia
sensibilidade em você.

Quer deixar uma luz na minha caixa de correio,
pra eu poder amanhecer domingo em paz?
Recorda da lenda: se apagar a luz na varanda, farolzinho
morro na travessia.

EM TODO CAOS,


Em toda bagunça, há uma lógica, que não cabe a mim interferir (deve haver uma vontade maior, pelo menos maior do que meu ânimo em reordenar). Assim,as DATAS não equivalem aos textos, e alguns textos não são meus (espero, Palova, que tenha ressalvado todos). Principalmente, os de psicologia, são anteriores a 2003 (troquei a área de estudo rsrs).

Não quis e nem pretendo confundir propositadamente ninguém, afinal, sou eu a me perder no labirinto antes de todos. O problema é que no blog houve uma mudança para html dinâmico, CSS, e outros brique-braques que, infelizmente, não consegui acompanhar. Como o tempo anda escorrendo pelos meus dedos, agora só dou atenção àquilo que me dá muito prazer (programação não é meu forte rs). Ao trazer posts de um lado, atualizar, fui apertando botões, imaginando que sempre "avançar", e deu zebra - no final, exigia algo que perdi, a senha. Mas... COMO SEMPRE CONSIGO O QUE EU QUERO, a solução foi fazer manualmente a junção dos posts(demorou!).

Pra terminar, COMPROVEI desse modo a tese que diz que "o acaso e a distração" nos proporcionam proteção e aprendizagem (sinais). Como o começo parou no final, o final tem muito do hoje, me deparei lendo posts que não recordava - e dizem tudo o que eu mesma precisava ler. No presente. "Pois o que parece falta de sentido é exatamente a assustadora certeza de que ali há o sentido, e que não somente eu não alcanço, como não quero, porque não tenho garantias". Clarice Lispector, sempre.

Nem quero entender o rumo das linhas tortas que "meus anjos" arrumam pra mim. Se nem eu e você compreendem, fazer o que? Eu "toco em frente e me divirto com a bagunça", lendo o que já foi, buscando o que jamais deveria ter ido. Do que é meu, isso não abro mão. O resto, a maré leva.

sexta-feira, julho 27, 2007


Abstração:.


Milhões de pensamentos vagam, o que é importante eu guardo. Às vezes, em dias de chá-das-cinco, estravazo, entremeios sorrisos e gargalhadas. Muito porque na chávena (minha avó adora falar essa palavra!) o que vai é vinho tinto. Pra acompanhar, torta. Destrava-línguas deveria ser o nome oficial de qualquer encontro nosso, circunstâncias e causas são indícios, e elegantemente tentamos filosofar sobre tudo - inclusive sobre as referências que detemos sobre pessoas, acontecimentos, relações... Fazemos piadas de tantas lágrimas, chistes de todo o drama. Deitamos no divã e elucubramos possíveis síndromes e complexos. Desvendamos sonhos, compartilhamos enredos e intuições. Hoje, especialmente agora, eu quero isso: pausa, sossego, paz. Quero cafuné, eu que lembro de sempre fugir de qualquer escova-bem-feita em salão de beleza (puxam e repuxam, o tico-e-teco ficam malucos). Quero alguém pra trocar bolita-de-gude, pra desafiar leis e desatinos, pra desmanchar regras e repudiar preconceitos. Gosto porque gosto de fazer tudo ao contrário do que adoro, só pra implicar com esse meu lado "mania-de-lista". De desafiar minha mente lógica e correta, insistindo em neologismos e desestruturações de palavras (reticências e ligações por hífen, quem dá mais?). Nada de parágrafos, só pra irritar a menina que mora dentro de mim, sempre atenta a tantos detalhes linguísticos. Eu sim, minha pior inimiga, me desconcerto pelo prazer de instantes depois me integrar. PORQUE ANDO ENGASGADA COM ESSE TRANSTORNO que acomete muitas pessas, essa insistência na negação, no não, em enumerar o que "odeia", quando basta dizer o que ama e adora. Essa visão turva de ver sempre tudo ruim, todo o mal que permeia a terra, crendo (quem sabe?) em ser o anjo-exterminador-em-missão-presente. Da vida, até o momento, uma das mais importantes lições que asssimilei foi "estar aberta a possibilidades". Sou adepta da fidelidade, mas sem juramentos; fã incondicional da verdade (mas se precisar ocultar ou colorir...), lealdade e cumplicidade são coisas-pra-vida-inteira, porém se preciso for, em vez de trangredir essas virtudes, vou embora sem olhar para trás. Se acaso me trair, posso perdoar sim, se me ferir, posso não me magoar, e se sua atitude for desleal, não se preocupe: a minha atitude independe da sua. Faça uma tentativa semanal de retirar o NÃO de sua mente, de suas frases, de sua meta. De sua vida. Em vez de "não aguentar mais tanto trabalho", diga ah, quero me esbaldar em fazer amor. Troque o que te chateia por imagens positivas, devaneios que te permitam suspirar no final da tarde. Permita-se abrir para que a vida aconteça dentro de você. ABSTRAIA o NÃO. Desta vida, o que nos impele a sorrir, é... Faça a lista, e pratique!

sexta-feira, julho 20, 2007


Darumá,


Darumá vem sem olhos: quando você quiser que o seu desejo se realize, pinte um dos seus olhos e, se o pedido for atendido, o outro deverá ser pintado em sinal de gratidão.

Esse bonequinho ocupou espaço na minha mesa, pousado no lado leste, portador de um olho somente. Alento. Foi o que o darumá me trouxe, a cada piscadela para seu lado, é como se me sussurrasse "ei, tudo vai ficar bem". Sei, sei... amuletos e talismãs são coisas do outro-lado-de-lá, logo eu tão certa e convicta de que nenhuma crença merece minha atenção, fui dobrada por esse pequenino homenzinho. É, realmente os homens andam me fazendo dobrar meus joelhos.

Não sei se o tal darumá atrairá boa sorte, se conseguirá repelir o mau-olhado e a inveja da BruxaMá, tudo o que sei é que quando me deparei com isso, numa imitação grotesca do mercado de pulgas que existe por aqui, foi amor à primeira vista. Senti que me protegia, e disso adveio bem-ventura, vento mensageiro portando boas novas. Não sei sei foi a chegada do vermelhinho, ou se foi mesmo desígnios e destinos já demarcados, tudo o que me faz sorrir agora é o aperto novamente presente, o sorriso matreiro enquanto faço contas e cálculos enormes, o coração levitando quando alcanço o ônibus, já na rua, de cara limpa e cabelos molhados.

Segundo a tradição dos japoneses, Darumá, o grande apóstolo indiano do budismo, veio à China. Consta que, por voluntária desistência das efêmeras alegrias terrenas, começou a dedicar a passar a vida de joelhos sobre o solo pedregoso, absorto em contemplação mística, sem mesmo permitir-se o simples regalo de dormir. Em certa noite, suas pálpebras cerraram de fadiga, e o bom Darumá deixou-se adormecer, para só acordar pela manhã. Então, pedindo a alguém uma tesoura ou instrumento parecido, cortou a si próprio as pálpebras indignas e arremessou-as ao solo, num gesto de despeito. As pálpebras, por milagre enraizaram, nascendo um arbusto nunca visto, cujas folhas foram fervidas, tornando-se um remédio precioso contra o sono e contra o cansaço das vigílias: estava conhecido o chá.

A história é mito, lenda popular. Não preciso de ninguém me dizendo que são tolices - gosto de fantasias, e sobrevivo de desejos. Darumá necessita de um nome, e isso me faz ir adiante. Me prosto e medito: terei eu ainda muito tempo nessa posição, de quatro por ti? Por ora, quer por favor sentar-se aqui, diante de mim, pra eu poder contemplar todo o Amor que vejo sair de mim? Se você for embora, o que sinto por ti não vai mudar, nem vai ficar trancado. Vou acalentar, e guardar para sempre este sentimento e tudo que compartilhamos. Eu tenho a certeza de nosso amor, isso é o bastante. O primeiro olho. Eu o amo o suficiente para deixá-lo ir embora, ou para virar minhas costas e prosseguir no meu caminho. Não há mais ninguém aqui temerosa, preocupada ou pregando sombras. Não sei se o amo para ficar e viver com você, sem arrependimentos, culpas ou condições... Mire o meu darumá, amor: não há previsões de segundo olho.

Cruzo o portão que tantas vezes já nos separou, sem mais delongas, nem tchaus. Só choro depois da esquina, ainda o amo. De quem é a culpa? Da paixão, do acaso ou dos deuses? Raiva a gente desconta, mais que cheque, e não fiz nada que não quiseram fazer. Arrepender, eu já me arrependi de tudo, mas chutar minha história de amor, nem por caldo de cana e pastel em feira, pois sei que a esfolada seria eu, deitada ali no chão. Os problemas existem quando a gente pensa neles, evitem me dizer que há perigo, do outro lado da rua. Eu não quero ouvir advertências: me deixe viver na ignorância, mergulhando nessa paixão, sozinha e muda.

Eu preciso vencer a rua que atravessa o meu caminho.

Anda... Luzia.

Os olhos glaucos me acusam: você não ama a ninguém; tem tanto medo de se apaixonar pra valer, que oscila assim, entre dois pontos, feito pêndulo. Quero ver quando isso ocorrer, sua entrega será tamanha, o que sobrará de você?

Eu quero e posso continuar fugindo, fingindo, caminhando assim. Gosto disso: dessa segurança, de me sentir amada, de estar no controle, estar no poder. Pra que me envolver em emoções fortes, se não fui criada pra isso, pra viver a vida com tanta intensidade? Prefiro ar condicionado, a grandes tormentas. Se possível, com controle remoto, por comodismo.

Quer saber? Quero ver a vida te levar, e numa tempestade maluca, você alçar vôo improvável. Cair de quatro realmente, sem eira nem beira, e perder o rumo, até dentro de você. Tudo por um Amor. Tudo pra viver. Não é por mal, mas a sensação é tão maraviolhosa, que é uma idiossincrasia você continuar caminhando sempre em linha reta, sem mergulhos, nem saltos sem para-quedas.

Baú de Brique-brac.

Como alguém pode ser tão burro e tropeçar no próprio pé assim?
Saco! Eu não quero lembrar de você dessa forma, a cada curva do pensamento, a cada acorde, toda vez que eu durmo ou quando acordo. Dói, sabia?

Enquanto penso em você um misto de calor e frio se revolve em mim. Outro dia encontrei escondidos num bolso da mochila aqueles dois bilhetes de correio elegante que você me escreveu. Eles andavam às minhas costas esse tempo todo como promessas, talvez esperando um momento certo ou preciso de me lembrar de ti, mas muito antes, quando nossos caminhos ainda não se afastavam e eu me perdia tentando te alcançar. Yo no buscava a nadie y te vi. Fiz o que qualquer pessoa sensata faria: chorei.

Veja, a memória sempre teve uma força muito grande sobre mim e é graças a ela que hoje sou quem sou; eu carrego um mundo vivo comigo e dentro de mim, um mundo ainda cheio dos teus sorrisos. Sinto falta da covinha do lado direito do teu rosto como se fosse do meu que ela tivesse sido arrancada. E eu não vou tentar dizer que tá tudo bem porque a verdade é que não tá. Estará, sabe deus quando, logo, lá no horizonte. Mas por enquanto a verdade é esta: tenho sonhos aqui dentro que não se encaixam mais em meu peito, ondas e mais ondas, vagalhões que carregam teu nome pra lá e pra cá e açoitam as minhas costas, inundam meu mar. Você vai partir e eu vou seguir sendo eu mesmo como sempre fui, com um pouco de novo, um pouco de velho, procurando gavetas para bilhetes antigos, dando novos sorrisos. Talvez ainda não fosse a hora de você ler isso. Eu devia ter avisado antes, então desculpa, mas é como eu torno o que sinto palpável, e é assim que eu consigo, de frente, fazer as pazes com meu coração, lentamente. E se você chegou até aqui, quero que saiba que eu preciso dizer adeus — e nada pra mim é mais difícil. Talvez nem a você, nem a mim, talvez nem a nós, posto que ainda existimos em algum lugar lá atrás, algum lugar que foi por mim absorvido e não pode, nem quero que seja esquecido.

Eu preciso dizer adeus ao que não foi e que agora não mais será. Eu preciso dizer adeus aos meses que vêm e não têm milagre, não têm mais o eco de um encontro que me trouxe à vida algumas das alegrias mais delicadas e que encheu meu céu de estrelas. Eu digo adeus ao que sonhei contigo pra guardar o que vivi e que é real e lindo, e porque preciso acordar se quiser sonhar de novo*.


AUTORIA: O texto pertence ao Guilherme (do blog Le Fígaro).

Nó-que-não-desata.

Porque continuo tropeçando no meu próprio pé.

Esse é o problema principal: continuo cobrando de outros aquilo que jamais consigo executar com perfeição. Será por isso que sei exatamente quando eles irão falhar? Recrimino-me por erros e esquecimentos pequenos. Aquilo que eu deveria ter prestado mais atenção, na hora imaginei que abarcaria tudo com minha super-memória. Pois ora, nesse momento me faltam neurônios, a bateria está fraca e eu sem saber o que fazer diante de tantos documentos. Trabalho duro essa semana.

Fora as atribulações negociais, sinto que algo está se perdendo no meio do nevoeiro. O que começou tão bem caminha tortuosamente, mostrando sua verdadeira face. É, não existe nada tão bom e perfeito assim - ainda mais caindo por aqui, no meu caminho. Devia ter desconfiado mais cedo. Em vez de todo o fru-fru que antecedeu, escuto hoje reclamações e cobranças. Fico à deriva, às vezes espero aquelas sutilezas românticas que imaginei serem "o jeito dele", tudo em vão. Por que as pessoas começam tão bem algo, e depois desistem de cuidar daquilo que conquistaram? Qualquer ser na falta de água, irá procurar por lágrimas; na falta de sol, seu dorso se curvará de encontro a terra... quem não conhece a lei da falta e da procura desesperada?

Beatriz querida, coloque mais uma lei na nossa jornada - além de respeitarmos os sentimentos alheios, devemos cuidar daquilo que conquistamos. Da mesma maneira que iniciamos a conquista, há que se prosseguir no caminho a dois. Com sorrisos, beijos, abraços, romantismo e tudo o mais. Porque não quero de maneira nenhuma que meu amor anseie por algo que interrompi, deixando-o à merce do destino. Não há pior aprendizado do que aquele passado a ferro por nós...

colcha de RETALHOS.

Ando apaixonada pela vida. E sempre por mim. Como num espelho mágico, me vejo ainda mais bela, mais sensual, mais saudável. Coisas de Marketing Pessoal, o que um curso e um banho de salão não fazem ao ego da gente? Mais, só o prazer de ter adquirido mais dois livros de Caio F. Abreu. E Dragões... está pra aportar por aqui: coisas do interior, quem tem, não quer e larga rapidinho na minha mão. Pra levantar o astral... Só não pensem que andei pra trás e resolvi meu problema com librianos(as). Continuo a atravessar a rua, a qualquer mero sinal destes. Pra terminar, trechos do Caio F. de Abreu, em vista do derradeiro silêncio que clama por aqui.

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"(...) Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta (...)"

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"(...)E acontece que eu ainda sou babaca, pateta e ridícula o suficiente para estar procurando o verdadeiro amor. Pára de rir, senão te jogo já este copo na cara. Pago o copo, a bebida. Pago o estrago e até o bar, se ficar a fim de quebrar tudo. Se eu tô tesuda e você anda duro e eu precisar de cacete, compro o teu, pago o teu. Quanto custa? Me dilua, que eu pago. Pago bebida, comida, dormida. E pago foda também, se for preciso.

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"Pego, claro que eu pego. Pego sim, pego depois. É grande? Gosto de grande, bem grosso. Agora não. Agora quero falar na roda. Essa roda, você não vê, garotão? Está por aí. rodando aqui mesmo. Olha em volta, cara. Bem do teu lado. Naquela mina ali, de preto, a de cabelo arrepiadinho. Tá bom, eu sei: pelo menos dois terços do bar veste preto e tem cabelo arrepiadinho, inclusive nós. Sabe que, se há uns dez anos se eu pensasse em mim agora aqui sentada com você, eu não ia acreditar? Preto absorve vibração negativa, eu pensava. O contrário de branco, branco reflete. Mas acho que essa moçada tá mais a fim mesmo é de absorver, chupar até o fundo do mal hein? Depois, até posso. Tem problema, não. Mas não é disso que estou falando agora, meu bem.

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"Você não gosta? Ah, não me diga, garotinho. Mas se eu pago a bebida, eu digo o que eu quiser, entendeu? Eu digo meu-bem assim desse jeito, do jeito que eu bem entender. Digo e repito: meu-bem-meu-bem-meu-bem. Pego no seu queixo a hora que eu quiser também, enquanto digo e repito e redigo meu-bem-meu-bem. Queixo furadinho, hein? Já observei que homem de queixo furadinho gosta mesmo é de dar o rabo. Você já deu o seu? Pelo amor de Deus, não me venha com aquela história tipo sabe, uma noite, na casa de um pessoal em Boiçucanga, tive que dormir na mesma cama com um carinha que. Todo machinho da sua idade tem loucura por dar o rabo, meu bem. Ascendente Câncer, eu sei: cara de lua, bunda gordinha e cu aceso. Não é vergonha nenhuma: tá nos astros, boy. Ou então é veado mesmo, e tudo bem."

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"Levanta não, te pago outra vodca, quer? Só pra deixar eu falar mais na roda. Você é muito garoto, não entende dessas coisas. Deixa a vida te lavrar a cara antes, então a gente. Bicho, esquisito: eu ia dizer alma, sabia? Quer que eu diga? Tá bom, se você faz tanta questão, posso dizer. Será que ainda consigo, como é que era mesmo? Assim: deixa a vida te lavrar a alma antes, então a gente conversa. Deixa você passar dos trinta, trinta e cinco, ir chegando nos quarenta e não casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa própria nem porra nenhuma. Acordar no meio da tarde, de ressaca, olhar sua cara arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no mundo. Vai doer tanto, menino. Ai como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa para te aconchegar ao meu seio e te poupar essas futuras dores dilaceradas. Como queria tanto saber poder te avisar: vai pelo caminho da esquerda, boy, que pelo da direita tem lobo mau e solidão medonha."

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"A roda? Não sei se é você que escolhe, não. Olha bem pra mim - tenho cara de quem escolheu alguma coisa na vida? Quando dei por mim, todo mundo já tinha decorado a tal palavrinha-chave e tava a mil, seu lugarzinho seguro, rodando na roda. Menos eu, menos eu. Quem roda na roda fica contente. Quem não roda se fode. Que nem eu, você acha que eu pareço muito fodida? Um pouco eu sei que sim, mas fala a verdade: muito? Falso, eu tenho uns amigos, sim. Fodidos que nem eu. Prefiro não andar com eles, me fazem mal. Gente da minha idade, mesmo tipo de. Ia dizer problema, puro hábito: não tem problema. Você sabe, um saco. Que nem espelho: eu olho pra cara fodida deles e tá lá escrita escarrada a minha própria cara fodida também, igualzinha à cara deles. Alguns rodam na roda, mas rodam fodidamente. Não rodam que nem você. Você é tão inocente, tão idiotinha com essa camisinha Mr. Wonderful. Inocente porque nem sabe que é inocente. Nem eles, meus amigos fodidos, sabem que não são mais. Tem umas coisas que a gente vai deixando, vai deixando, vai deixando de ser e nem percebe. Quando viu, babau, já não é mais. Mocidade é isso aí, sabia? Sabe nada: você roda na roda também, quer uma prova? Todo esse pessoal da preto e cabelo arrepiadinho sorri pra você porque você é igual a eles. Se pintar uma festa, te dão um toque, mesmo sem te conhecer. Isso é rodar na roda, meu bem."

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"Pra mim, não. Nenhum sorriso. Cumplicidade zero. Eu não sou igual a eles, eles sabem disso. Dama da noite, eles falam, eu sei. Quando não falam coisa mais escrota, porque dama-da-noite é até bonito, eu acho. Aquela flor de cheiro enjoativo que só cheira de noite, sabe qual? Sabe porra: você nasceu dentro de um apartamento, vendo tevê. Não sabe nada. fora essas coisas de vídeo, performance, high-tech, punk, dark. Computador, heavy-metal e o caralho. Sabia que eu até vezenquando tenho mais pena de você e desses arrepiadinhos de preto do que de mim e daqueles meus amigos fodidos? A gente teve uma hora que parecia que ia dar certo. Ia dar, ia dar. Sabe quando vai dar? Pra vocês, nem isso. A gente teve a ilusão, mas vocês chegaram depois que mataram a ilusão da gente. Tava tudo morto quando você nasceu, boy, e eu já era puta velha. Então eu tenho pena. Acho que sou melhor, sei porque peguei a coisa viva. Tá bom, desculpa, gatinho. Melhor, melhor não. Eu tive mais sorte, foi isso? Eu cheguei antes. E até me pergunto se não é sorte também estar do lado de fora dessa roda besta que roda sem fim, sem mim. No fundo, tenho nojo dela - você?"

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"Você não viu nada, você nem viu o amor. Que idade você tem, vinte? Tem cara de doze. Já nasceu de camisinha em punho, morrendo de medo de pegar Aids. Vírus que mata. Neguinho, vírus do amor. Deu a bundinha, comeu cuzinho, pronto: paranóia total. Semana seguinte, nasce uma espinha na cara e salve-se quem puder: baixou Emílio Ribas. Caganeira, tosse seca, gânglios generalizados. Ô boy, que grande merda fizeram com a tua cabecinha, hein? Você nem beija na boca sem morrer de cagaço. Transmite pela saliva, você leu em algum lugar. Você nem passa a mão em peito molhado sem ficar de cu na mão. Transmite pelo suor, você leu em algum lugar. Supondo que você lê, claro. Conta pra tia: você lê, meu bem? Nada, você não lê nada. Você vê pela tevê, eu sei. Mas na tevê também dá, o tempo todo: amor mata amor mata amor mata. Pega até de ficar do lado, beber do mesmo copo. Já pensou se eu tivesse? Eu, que já dei pra meia cidade e ainda por cima adoro veado."

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"Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e mortal. Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fundo de seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem nenhuma piedade, vai te poluir com todos os líquidos, contaminar teu sangue com todos os vírus. Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy. Já chupou buceta de mulher? Claro que não, eu sei: pode matar. Nem caralho de homem: pode matar. Já sentiu aquele cheiro molhado que as pessoas têm nas virilhas quando tiram a roupa? Está escrito na sua cara, tudo que você não viu nem fez está escrito nessa sua cara que já nasceu de máscara pregada. Você já nasceu proibido de tocar no corpo do outro. Punheta pode, eu sei, mas essa sede de outro corpo é que nos deixa loucos e vai matando a gente aos pouquinhos. Você não conhece esse gosto que é o gosto que faz com que a gente fique fora da roda que roda e roda e que se foda rodando sem parar, porque o rodar dela é o rodar de quem consegue fingir que não viu o que viu. Ô boy, esse mundo sujo todo pesando em cima de você, muito mais do que de mim e eu ainda nem comecei a falar na morte..."

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"Já viu gente morta, boy? É feio, boy. A morte é muito feia, muito suja, muito triste. Queria eu tanto ser assim delicada e poderosa, para te conceder a vida eterna. Queria ser uma dama nobre e rica para te encerrar na torre do meu castelo e poupar você desse encontro inevitável com a morte. Cara a cara com ela, você já esteve? Eu, sim, tantas vezes. Eu sou curtida, meu bem. A gente lê na sua cara que nunca. Esse furinho de veado no queixo, esse olhinho verde me olhando assim que nem eu fosse a Isabella Rossellini levando porrada e gostando e pedindo eat me eat me, escrota e deslumbrante. Essa tontura que você está sentindo não é porre, não. É vertigem do pecado, meu bem, tontura do veneno. O que que você vai contar amanhã na escola, hein? Sim, porque vocé ainda deve ir à escola, de lancheira e tudo. Já sei: conheci uma mina meio coroa, porra-louca demais. Cretino, cretino, pobre anjo cretino do fim de todas as coisas. Esse caralhinho gostoso aí, escondido no meio das asas, é só isso que você tem por enquanto. Um caralhinho gostoso, sem marca nenhuma. Todo rosadinho. E burro. Porque nem brochar você deve ter brochado ainda. Acorda de pau duro, uma tábua, tem tesão por tudo, até por fechadura. Quantas por dia? Muito bem, parabéns: você tá na idade. Mas anota aí pro teu futuro cair na real: essa sede, ninguém mata. Sexo é na cabeça: você não consegue nunca. Sexo é só na imaginação. Você goza com aquilo que imagina que te dá o gozo, não com uma pessoa real, entendeu? Você goza sempre com o que tá na sua cabeça, não com quem tá na cama. Sexo é mentira, sexo é loucura, sexo é sozinho, boy."

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"Eu, cansei. Já não estou mais na idade. Quantos? Ah, você não vai acreditar, esquece. O que importa é que você entra por um ouvido meu e sai pelo outro, sabia? Você não fica. você não marca. Eu sei que fico em você, eu sei que marco você. Marco fundo. Eu sei que, daqui a um tempo, quando você estiver rodando na roda, vai lembrar que, uma noite. sentou ao lado de uma mina louca que te disse coisas, que te falou no sexo, na solidão, na morte. Feia, tão feia a morte, boy. A pessoa fica meio verde, sabe? Da cor quase assim desse molho de espinafre frio. Mais clarinho um pouco, mas isso nem é o pior. Tem uma coisa que já não está mais ali, isso é o mais triste. Você olha, olha e olha e o corpo fica assim que nem uma cadeira. Uma mesa, um cinzeiro, um prato vazio. Uma coisa sem nada dentro. Que nem casca de amendoim jogada na areia, é assim que a gente fica quando morre, viu, boy? E você, já descobriu que um dia também vai morrer?"

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"Dou, claro. Ficou nervosinho, quer cigarro? Mas nem fumar você fuma, o quê? Compreendo, compreendo sim, eu compreendo sempre, sou uma mulher muito compreensiva. Sou tão maravilhosamente compreensiva e tudo que, se levar você pra minha cama agora e amanhã de manhã você tiver me roubado toda a grana, não pense que vou achar você um filho da puta. Não é o máximo da compreensão? Eu vou achar que você tá na sua, um garotinho roubando uma mulher meio pirada, meio coroa, que mexeu com sua cabecinha de anjo cretino desse nojento fim de todas as coisas. Tá tudo bem, é assim que as coisas são: ca-pi-ta-lis-tas, em letras góticas de neon. Mulher pirada e meio coroa que nem eu tem mais é que ser roubada por um garotinho ïmbecil e tesudinho como você. Só pra deixar de ser burra caindo outra vez nessa armadilha de sexo."

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Fissura, estou ficando tonta. Essa roda girando girando sem parar. Olha bem: quem roda nela? As mocinhas que querem casar, os mocinhos a fim de grana pra comprar um carro, os executivozinhos a fim de poder e dólares, os casais de saco cheio um do outro, mas segurando umas. Estar fora da roda é não segurar nenhuma, não querer nada. Feito eu: não seguro picas, não quero ninguém. Nem você. Quero não, boy. Se eu quiser, posso ter. Afinal, trata-se apenas de um cheque a menos no talão, mais barato que um par de sapatos. Mas eu quero mais é aquilo que não posso comprar. Nem é você que eu espero, já te falei. Aquele um vai entrar um dia talvez por essa mesma porta, sem avisar. Diferente dessa gente toda vestida de preto, com cabelo arrepiadinho. Se quiser eu piro, e imagino ele de capa de gabardine, chapéu molhado, barba de dois dias, cigarro no canto da boca, bem noir. Mas isso é filme, ele não. Ele é de um jeito que ainda não sei, porque nem vi. Vai olhar direto para mim. Ele vai sentar na minha mesa, me olhar no olho, pegar na minha mão, encostar seu joelho quente na minha coxa fria e dizer: vem comigo. É por ele que eu venho aqui, boy, quase toda noite. Não por você, por outros como você. Pra ele, me guardo. Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio desse lixo todo procuro o verdadeiro amor. Cuidado, comigo: um dia encontro."

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"Só por ele, por esse que ainda não veio, te deixo essa grana agora, precisa troco não, pego a minha bolsa e dou a fora já. Está quase amanhecendo, boy. As damas da noite recolhem seu perfume com a luz do dia. Na sombra, sozinhas. Envenenam a si próprias com loucas fantasias. Divida essa sua juventude estúpida com a gatinha ali do lado, meu bem. Eu vou embora sozinha. Eu tenho um sonho, eu tenho um destino, e se bater o carro e arrebentar a cara toda saindo daqui, continua tudo certo. Fora da roda, montada na minha loucura. Parada pateta ridícula porra-louca solitária venenosa. Pós-tudo, sabe como? Darkérrima, modernésima, puro simulacro. Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta frio lá fora e quando chega essa hora da noite eu me desencanto. Viro outra vez aquilo que sou todo dia, fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo: uma criança assustada."

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O Sol entrou ontem em Libra. E porque tudo é ritual, porque fé, quando não se tem, se inventa, porque Libra é a regência máxima de Vênus, o afeto, porque Libra é o outro (quando se olha e se vê o outro, e de alguma forma tenta-se entrar em alguma espécie de harmonia com ele), e principalmente porque Deus, se é que existe, anda distraído demais, resolvi chamar a atenção dele para algumas coisas. Não que isso possa acordá-lo de seu imenso sono divino, enfastiado de humanos, mas para exercitar o ritual e a fé - e para pedir, mesmo em vão, porque pedir não só é bom, mas às vezes é o que se pode fazer quando tudo vai mal. Nesse zero grau de Libra, queria pedir a isso que chamamos de Deus um olho bom sobre o planeta terra, e especialmente sobre a cidade de são Paulo. Um olho quente sobre aquele mendigo gelado que acabei de ver sob a marquise do cine Majestic; um olho generoso para a noiva radiosa mais acima. Eu queria o olho bom de Deus derramado sobre as loiras oxigenadas, falsíssimas, o olho cúmplice de Deus sobre as jóias douradas, as cores vibrantes. O olho piedoso de Deus para esses casais que, aos fins de semana, comem pizza com fanta e guaraná pelos restaurantes, e mal se olham enquanto falam coisas como: "você acha que eu devia ter dado o telefone da Catarina à Eliete? – e outro grunhe em resposta. Deus, põe teu olho amoroso sobre todos que já tiveram um amor, e de alguma forma insana esperam a volta dele: que os telefones toquem, que as cartas finalmente cheguem. Derrama teu olho amável sobre as criancinhas demônias criadas em edifícios, brincando aos berros em playgrounds de cimento. Ilumina o cotidiano dos funcionários públicos ou daqueles que, como funcionários públicos, cruzam-se em corredores sem ao menos se verem – nesses lugares onde um outro ser humano vai-se tornando aos poucos tão humano quanto uma mesa. Passeia teu olhar fatigado pela cidade suja, Deus, e pousa devagar tua mão na cabeça daquele que, na noite, liga para o CVV. Olha bem o rapaz que, absolutamente só, dez vezes repete Moon Over Bourbon Street, na voz de Sting, e chora. Coloca um spot bem brilhante no caminho das garotas performáticas que para pagar o aluguel tão duro como garçonetes pelos bares. Olha também pela multidão sob a marquise do Mappin, enquanto cai a chuva de granizo, pelo motorista de taxi que confessa não Ter mais esperança alguma. Cuida do pintor que queria pintar, mas gasta seu talento pelas redações, pelas agências publicitárias, e joga tua luz no caminho dos escritores que precisam vender barato seu texto- olha por todos aqueles que queria ser outra coisa qualquer a que não a que são, e viver outra vida se não a que vivem. Não esquece do rapaz viajando ônibus com seus teclados para fazer show na Capital, deita teu perdão sobre os grupos de terapia e suas elaborações da vida, sobre as moças desempregadas em seus pequenos apartamentos na Bela Vista, sobre os homossexuais tontos de amor não dado, sobre as prostitutas seminuas, sobre os travestis da República do Líbano, sobre os porteiros de prédios comendo sua comida fria nas ruas dos Jardins. Sobre o descaramento, a sede e a humildade, sobre todos que de alguma forma não deram certo (porque, nesse esquema, é sujo dar certo), sobre todos que continuam tentando por razão nenhuma – sobre esse que sobrevivem a cada dia ao naufrágio de uma por uma das ilusões. Sobre as antas poderosas, ávidas de matar o sonho alheio. Não. Derrama sobre elas teu olhar mais impiedoso, Deus, e afia tua espada. Que no zero grau de Libra, a balança pese exata na medida do aço frio da espada da justiça. Mas para nós, que nos esforçamos tanto e sangramos todo dia sem desistir, envia teu Sol mais luminosos, esse zero grau de Libra. Sorri, e abençoa nossa amorosa miséria atarantada."

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"...Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender..."

Azul

Meu coração é teu coração? Quem me reflete pensamentos? Quem me empresta esta paixão sem raízes?*

Nostalgia, a algia do Nostos. Uma algia é uma dor, ou um sofrimento, de natureza física ou moral. Mas... e Nostos? Palavra-chave da Odisséia, uma das que reaparecem periodicamente, significa "desejo de volta". Palavra que só pode ter surgido de um povo de marinheiros, de gente que passava a vida longe de casa, e que todo dia desejava ardentemente retornar ao lar, à pátria. Pedido nem sempre fácil de ser executado, vejam a trajetória de Ulisses! Para mim, nostalgia é a dor experimentada quando se quer muito voltar para casa, e isso muitas vezes é difícil ou impossível. Sempre que ouço essa palavra - Nostalgia, imagino um Ulisses chorando, suplicando na praia da ilha de Calipso à ninfa que o deixe voltar para casa... E sempre que a leio num texto ou poema, penso estar ouvindo na areia o infinito lamento, o ir e vir de um mar em que cada onda, ao morrer diz: nostos...nostos...nostos...

"Deixaria por aqui, neste texto, toda a minha alma. Aqui, neste local que já viveu comigo tantas dores e horas santas. Que pena das letras que se levantaram, e lentamente passaram, deixando-me faminta das rosas e estrelas que preenchiam meus momentos. Vejo passar nós, espectros e espectadores de nossas vidas, desnudos... pégasos sem asas, prisioneiros dos desejos e de escolhas; veredas impossíveis".

Engraçado como hoje vivemos para compromissos morais, e qualquer situação que nos fuja do controle acaba gerando misto de excitação e medo. Ainda que nada do que façamos possa caracterizar qualquer tipo de delito. É uma pena que, apesar de nossa cumplicidade, tenhamos uma "odisséia" inteira para nos aproximar e nos reorientar. Talvez seja meu lado obscuro, aquele segundo eu, que a gente tenta domar todo dia, e renasce incontrolável, a cada nova situação interessante. Fixamos o "porto seguro", o qual adquire ar intocável - de "quase santidade", e nos jogamos à novas experiências, para satisfação de nossos Egos. Assim como vejo você um igual, também admiro aquele é o Oposto. Nós, do mundo mágico somos mais forte e resistimos mais. Será? Estamos correndo riscos... Ora, ouvir estrelas, ou brincar com fogo, sei tão bem quanto qualquer Sherazade, que manipula e dimensiona o uso das palavras, o limite do uso seguro. E vou além: faço arder sentimentos inconfessáveis, transtornando oceanos dentro de si. Entrega ou posse? O que diria Freud do que eu quero? Platão seria abstrato, não material, inexistente, não haveria dor, culpa, consciência ou arrependimento. Nada aconteceu. Viveríamos na paz do não saber. Entretanto, sabemos do atrito, da faísa, do inflamável desejo, da nostalgia, e da imensa vontade de voltar a Ítaca, de comungar em nossos abraços enroscados. Relembra o escritor irlandês Oscar Wilde: "algumas tentações são tão grandes que é preciso muita coragem para ceder a elas". Todos sabemos que na vida aprendemos mais com dez dias de agonia, do que com anos de segurança e pseudo-felicidade. Dentro de nosssas diferenças, como somos parecidos - Ampliar para dominar. Na minha vida as coisas sempre acontecem de uma maneira inesperada, feito vento, tufão.

Saudação a minha Senhora! A vida me leva, e eu me carrego adiante. Preciso do "novo" para todo dia não morrer de tédio. Decisões intuitivas e muitas vezes, sem sentido, dão lugar ao reconhecimento e à alegria (pra não dizer tesão mesmo!), e esse prazer é o que me move. Mesmo que o passado não contribua, a nostalgia me impele a chegar até a minha Ítaca, e desfrutar da mesa e da cama com Meu Deus. E aqui, a cozinheira larga o avental e continua sua Odisséia. Não mais como simples mortal, mas metamorfoseada em Core, Sphinx, a esfinge... uma devoradora de homens. "Meu coração é um cristal vivo na transparência do tempo. Sou campo, sou arado. Sou a serenidade do Si, que encontrou seu verdadeiro rosto"; e é com Jacques Lacarriére que me perco no mar...nos olhos seus..."Compreendi, então, que a vida não é uma sonata que, para realizar sua beleza tem que ser tocada até o fim. Dei-me conta, ao contrário, que cada momento..."***

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: a noite está estrelada,
E cintilam azuis, os astros, à distância.
O vento da noite gira no céu e canta.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu a quis, e às vezes ela também me quis.
Nas noites como esta a tive entre meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob este céu infinito.
Ela me quis, às vezes eu também a quis...
(...)Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.**
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Devidos Créditos:
*Lorca
**Pablo Neruda
***Rubem Alves

Nahuelbuta.

Estranho, eu admito. Irreal, por demais. Uma história que se passa num Aquário, cujos personagens principais são dois peixes. Não, não é Nemo. Mas trata de profundidade, asa quebrada e dor. É, me perdoe: geralmente quando apaixonada, fico desconfiada, ambígua diante de. Seduzo por espírito de companheirismo, por gostar do jogo e da conquista. Eu sempre adorei o momento em que a outra parte é trespassada pela flecha de minha solicitude, o seu recuo súbito, quase imperceptível... O avanço hesitante do olhar de retribuição... Nessas horas, digo coisas amáveis, me aproximo com desenvoltura, mas todo olhar clínico e atento do outro perceberá a distância que sempre guardei de tudo - como se a qualquer momento eu pudesse sair desse casulo construído por mim, onde me envolvi, evitando explosões ao caminhar em terreno minado. Essa parte você conhece muito bem, meu Amado, sabe como jogo, quais são minhas apostas e o terreno que sei conquistar. O que você nunca desconfiou ou talvez não tentou alcançar foi a outra parte de mim, aquela que distanciada ficava, à beira de nossa cama, olhando para nossa vida, desencantada e em lágrimas.

Sei que tudo isso faz parte de representações de meu passado, uma época que considero mergulhada na escuridão. Acreditava que amar era só uma necessidade carnal, desejo de um membro de homem, vontade de ter filhos, instintos parecidos aos das vacas. Quando nos uníamos, jamais nos vimos. Eu, engordando, acumulando frustrações, lutando em cada cópula para ser a mulher perfeita para você, para explodir de prazer feroz e sem refinamento. Nenhum de nós - esta é a verdade nua e crua, soube acariciar e ser terno, deixar de ser um para fundir-se e ser dois-em-um. Um no outro. Você, constantemente voltado aos seus assuntos, compreendo, precisando sempre estudar e estar atento a esta realidade cruel, escritório, reuniões, consultório. Eu, sonhadora, apaixonada, querendo o mundo e mais um pouco... Vontade imensa de viajar, viver, ser... Em resumo: separados, mas vivendo sob o mesmo teto. Por que nunca se interessou em conhecer minha Verdadeira Pessoa? Aquela que carrego dentro, sem máscaras, frágil, indecisa e cheia de paixão? Via uma santa dona de casa, perfeita parceira e decorada de nosso mundo, amável anfitriã; e isso lhe bastou? Deixou que me entendiasse, meus sonhos amarrotados, guardados dentro de uma gaveta, nada lhe importando? O que somos e continuamos sendo? Seres primitivos, sociáveis, fruto de uma cultura que preserva o materialismo e as conversas superficiais. Perdemos com isso o sal da vida, o gozo terno. E enquanto tudo acontecia, me sentia secar por dentro... Seca Ameixa preta, meu codnome, muito prazer.

A felicidade que não tinha me fazia inchar, meu corpo transmitia o que por dentro se agitava. Muitas vezes olhei para outros homens, como se fossem frutos proibidos, maravilhosos... mas na hora, cheia de culpa, hipnotizada, voltava-me para você, me afogando em seu sexo, no seu vazio, na sua brutalidade de homem-inconsciente, que nunca aprendeu a se doar com muito medo de amar. Sei que aceitei sem vacilar o sacrifício de engavetar minhas paixões, diante da segurança que me proporcionaste. Me desculpe, querido, naquela época não sabia que amor, além de essencial, é um milagre e ocorre, mesmo com todas as portas trancadas. Você deve imaginar que algum dia fui insincera contigo, mas acredite: jamais o enganei. De algum modo estranho e amigo tenho profundo sentimento por ti, e me abalo ao saber de sua provável tristeza. Eu nunca imaginei me apaixonar desse jeito, e nem por tal pessoa, pois quando apertei sua mão e aceitei caminhar ao seu lado, queria muito ser-lhe fiel até a morte, e que jamais eu provocasse algum sofrimento em torno de nós. O que desvelo agora é que não se pode lutar contra a natureza; ou como alguns chamam - o destino.

Eu não sei quando começou: aconteceu repentinamente, sem premeditação, uma catastrófe tão grande como um terremoto. Num átimo de tempo, sem muita cautela, ele era outro ser, diferente daquele que eu conhecera; e eu alguém modificada, ou quem sabe unificada. Ameaça, desafio, fragilidade - tudo ao mesmo tempo passou pelo meu corpo, que já não comportava armaduras. Tudo rodopiava em minha mente, que não conseguia mais lançar passos de distância em defesa de. Trago viva a memória daqueles dias onde a ordem desrespeitou a vontade, desprezando todo e qualquer outro sentimento. Espera: me precipito, o que houve é que comecei a acreditar na fábula da pessoa querida e inteligente, e mais tarde amada. Sem perceber, pouco a pouco fui encontrando em outros olhos meus desejos reprimidos, meu sexo se enchia de água ao mero sussuro de palavras suas, e mesmo me afastando sempre, pois não queria de forma alguma que esse abalo sismico sobreviesse até nós... um momento depois, nova ventania, e eu lutando contra essa loucura. Sei que nessa época já nos encontrávamos perdidos: todos, um a um, leite esparramado pela cozinha.

Me perguntas o que fiz para conter tal desejo: te revelo que usei todos os escudos que uma mulher conhece - a inércia, a distância - ,mesmo com o desespero me queimando diariamente, por dentro. Recolhi-me e observei tantas vezes a questão, busquei tantos caminhos e respostas, seria questão de abduzação? Caviloso. Minha alma se escondia desse perigo, farejava pólvora, pensava que não estava sequer conquistada, pois como sabes, é tão árdua e difícil embrulhada segurar meu coração, e atravessá-lo com sentimento. Nunca fui dada a sentimentos repentinos. Tentei depois, e adianto, inutilmente, ficar ao lado dos fortes, e vi que não era suficientemente forte para sustentar a arrogância de saber-me curvada e desmanchando em tristeza, sem nada fazer. Me vi sendo falsa, despojamento planejado. Desisti: quis ser só verdadeira. Precisava dos cadernos caseiros da mulher-goiabada que eu era. Da bruxa cismarenta que me tornara. Ali, naquelas múltiplas palavras, havia memória e cinza. "viens mon chat, sur mon coeur amourex..." Sem este amor revelado pelo desatino, meus olhos estavam desertos... nunca notou? Meus ouvidos, murchos, meu tato, áspero. O ar estava envenenado, e cada novo dia era para mim uma ponte negra a ser atravessada montada em uma égua cega. Como não notou o quão sofredora estava? Por que não me acolheu nos seus braços e descobriu-me, pétala a pétala?

As horas corriam, e meu coração em fogaréu. Todos impassíveis, o telefone mudo, resolvi continuar com nossa casa, nossa construção, nossa vida de recortes de jornal. Pensei que pudesse me consolar em você, lamber como gata minhas feridas, mas tu és um comodista, apático, pois eu ali, rolando de aflição, e você tateando em muitas direções. Vejo-o em pensamento, e peço-lhe perdão pela janela que abri. Através dela percebi todo o sistema burguês que nos envolvia, a importância da aparência, comecei a achar graça nas coisas desengraçadas. Sem sarcasmo, foi isso que me impediu de, sem Ele, virar uma esponja de fel. Confesso que da sina de acabar nada, ausente de emoções, oca, inerte... não escapei. Houve uma trégua - e pensei estar salva. Talvez a dor de amar tivesse se curado com a benzedura, malefício que corta tudo com rezas, alecrim queimando, fumo e teia de aranha. Engano meu: no espelho de algum dia percebi os olhos cheios de lágrimas, perplexa como uma boneca. Deusa caída e rendida.

Por que não me disse nada? Apertava-o demoradamente contra o meu peito, suspirando e esperando. Por que não me disse o que tinha pela frente? Nos farrapos de minha memória não encontro um sinal de você estendendo-me sua mão, me salvando desse furacão. Por que me deixou sozinha, na tempestade, no silêncio de cada noite mal-dormida? Ousei até, creia, costurar com linha dupla a ferida que jazia aberta dentro do meu peito, clamando por aquele homem. Odiar não, pois faz mal pro fígado, sem falar no perigo da úlcera, lumbago. Dentro de mim havia a certeza de que mais dia, menos dia haveria o rompimento desta falsa harmonia que vivia, desse falso equilíbrio que teimava em caminhar, e mesmo intensa, continuava com a farsa de pálida fantasminha de amor. Um dia, eu tinha consciência, os preconceitos desapareceriam - o amor reencontrado era muito forte.

Não há separação entre nós - entenda -, nossos princípios claros e escuros se entrelaçam porque feitos do mesmo material, e dançam no oceano eterno. Somos dois gritos melodiosos que surgiram como uma jóia numa fase de nossa vida que já considerávamos morta e sem sentido. Com ele, necessito de tão pouco para sorrir: agordo amando a terra, o céu, os amanheceres, o sabor do ar, as flores que planto. Quero estar viva, descoberta, desvelada... pois dentro de mim me encontro cheia e nutrida. Ah, como gostaria que você também algum dia se abandonasse às asas do Amor. De alguma maneira, te falo, assim como nos encontramos e aprendemos um com o outro, eu e Ele também estamos destinados a cruzar o caminho do outro. Hoje sei que não posso mais andar sozinha, sem ele ao lado, pois necessito dos momentos que costuram nossa história e nos empurram para um encontro perfeito. Mais do que isso, sinceramente querido, eu também não sei...

Odiar e nem amar é fácil. Eu percorri milhas desse caminho. A paixão é laboriosa, exige fervor, a pele esquenta. Se tens alma de gelo, se afaste desse sentimento. Pois Amor não se define, se contorna. No alheamento que chamamos de privacidade, ele se guarda e se extravaza. Não se faz perguntas sobre porque amamos, e nem muito menos questionamos a quem - as frases e os gestos nunca são sem defesas. Ele, com seu florete, tocou reto meu coração, que nem se encontrava exposto. O apaziguamento me veio quando desisti de buscar fugas, e comecei a reencontrar-me - fragmentos de imagens estilhaçadas, que se encaixavam suavemente, pois ajudada por ele na tentativa de me compor Una. Renunciei a porta de saída de emergência: quero uma vida limpa, coração sem mágoas ou rancor, tão limpo que em meio do maior abandono, haverá força para se voltar na direção do meu Amado, como um girassol, na despedida do crepúsculo. Eu preciso disso, e desejo que ao menos sejas feliz. Não esqueças que enquanto sonhamos, tudo é vago, leve, mudo. Quando vivemos alcançamos estrelas, caímos de treze andares, estatelamos muitas vezes de cara ao chão, rezamos por momentos seguros. O amor não tem disciplina, nem método, nem arrumação. Nunca estará direitinho nos lugares, como cálculo e álgebra. E logo depois, quando nos jogamos profundamente um nos braços do outro, vemos que essa indisciplina, insegurança e tristeza é só na aparência, na superfície, pura casca. Lá nas profundezas, o amor é de uma ordem e harmonia só comparável a abóbada celeste.

Não quero que penses que hoje sou uma mulher forte e totalmente feliz. Ainda ouço vozes: "e se a vida estiver lá fora, nesse Amor que desdenho?" E se o desvio da minha rota foi exatamente esse que escolho? Haverá ainda tempo de consertar? Quanto a isso, meu querido, só o tempo e você um dia poderão me responder. Até lá, tenho que viver o que se encontra impregnado em mim.

(Isto é ficção - me aluguei para sonhar para uma amiga).

Diana, por Cloé.

Anteros

"Tenho do amor profundo e do uso proveitoso dele um conceito superficial e decorativo. Sou sujeito a paixões visuais. Guardo intacto o coração dado a mais irreais destinos. Não me lembro de ter amado senão o "quadro" em alguém, o puro exterior - em que a alma não entra para mais que fazer esse exterior animado e vivo - e assim diferente dos quadros que os pintores fazem. Amo assim: fixo, por bela, atraente, ou de outro modo qualquer, amável, uma figura, de homem/mulher, e essa figura me obceca, me prende, se apodera de mim. Porém não quero mais vê-la, nem olho nada com mais horror que a possibilidade de vir a conhecer e a falar à pessoa real que essa figura aparentemente manifesta. Amo com o olhar, e nem com a fantasia.

Porque nada fantasio dessa figura que me prende. Não me imagino ligado a ela de outra maneira, porque o meu amor decerto não tem de mais para dizer. Não me interessa saber quem é, que faz, que pensa a criatura que me dá para ver o seu aspecto exterior. A imensa série de pessoas e de coisas que forma o mundo é para mim uma galeria interminável de quadros, cujo interior não me interessa. Não me interessa, porque a alma é monótona, e sempre a mesma em toda a gente; diferem apenas as suas manifestações pessoais, e o melhor dela é o que transborda para o sonho, para os modos, para os gestos, e assim entra para o quadro que me prende, e em que visiono caras constantes a essa afeição."

Fernando Pessoa, transcrito por Palova Lemincka.

POSTAGENS do absurdo.

Todo mundo é um pouco maluco. Porém, após ler e reler Fernando Pessoa, em "Livro do Desassossego", ando me considerando extremamente normal, mesmo eu sendo também realizadora de muitos absurdos e seguidora de frases sem nexo, adorando silêncio embalador, e acreditando em divindade aqui, dentro de mim. Um trecho de Pessoa, pra quem está precisando de conselhos nessa área.

"CONSELHOS ÀS MAL CASADAS"
(as mal casadas são todas as mulheres casadas e algumas solteiras)

Livrai-vos sobretudo de cultivar os sentimentos humanitários. O humanitarismo é uma grosseria. Escrevo a frio, raciocinadamente, pensando em vosso bem-estar, pobres mal-casadas. A arte toda, toda a libertação, está em submeter o espírito o menos possível, deixando ao corpo, que se submeta à vontade. Ser imoral não vale a pena, porque diminui, aos olhos dos outros, a vossa personalidade, ou a banaliza. Ser imoral dentro de si, cercada do máximo respeito alheio. Ser esposa e mãe corporeamente virginal e dedicada, e ter, porém, contatos carnais inexplicáveis com todos os homens da vizinhança, desde os merceeiros até ... eis o que maior sabor tem a quem realmente quer gozar e alargar a sua individualidade, sem descer ao método da criada de servir, que, por ser também delas, é baixo, nem cair na honestidade rigorosa da mulher profundamente etúpida, que é decerto filha do interesse.

Segundo a vossa superioridade, almas femininas que me ledes, sabereis compreender o que escrevo. Todo o prazer é do cérebro, todos os crimes, que se dão, é só em sonhos que se cometem! Lembro-me de um crime belo, real. Não o houve nunca. São belos os que nós não conhecemos. Bórgia cometeu belos crimes? Acreditai-me que não cometeu. Quem os cometeu belíssimos, profusos, foi o nosso sonho de Bórgia, foi a idéia de Bórgia que há em nós. Tenho a certeza que o César Bórgia que existiu era um banal e um estúpido, tinha de o ser porque existir é sempre estúpido e banal.

Dou-vos estes conselhos desinteressadametne, aplicando o meu método a um caso que me não interessa. Pessoalmente, os meus sonhos são de império e glória; não são sensuais de modo algum. Mas quero vos-ser útil, ainda que mais não seja, só pra me arreliar, porque detesto o útil. Sou altruísta a meu modo.

Proponho-me ensinar-lhes como trair o seu marido em imaginação. Acreditem-me: só as criaturas ordinárias traem o marido realmente. O pudor é uma condição sine qua non de prazer sexual. O entregar-se a mais de um homem mata o pudor. Concedo que a inferioridade feminina precisa de macho. Acho que, ao menos, se deve limitar a um macho só, fazendo dele, se disso precisar, centro de um círculo, de raio crescente, de machos imaginados. A melhor ocasião para fazer isso é nos dias que antecedem os da menstruação. Assim: Imaginam o seu marido mais branco de corpo. Se imaginam bem, senti-lo-ão mais branco sobre si. Retenham todo o gesto de sensualidade excessiva. Beijem o marido que lhes estiver em cima do corpo, e mudem com a imaginação o homem num olhar - lembrem quemlhes estiver em cima da alma. A essência do prazer é o desdobramento. Abram a porta da janela ao Felino em vós.

Como tracasser o marido. Importa que o marido às vezes se zangue. O essencial é começar a sentir a atração pelas coisas que repugnam, não perdendo a disciplina exterior. A maior disciplina interior junta à máxima disciplina exterior compõe a perfeita sensualidade. Cada gesto que realiza um sonho ou um desejo, irrealiza-o realmente. A substituição não é tão difícil como julgam. Chamo substituição à prática que consiste em imaginar-se a gozar com um homem A, quando se está copulando com um homem B. Minhas queridas discípulas, desejo-lhes, com um fiel cumprimento dos meus conselhos, inúmeras e desdobradas volúpias com o, não nos "atos do", animal macho a que a Igreja ou o Estado as tiver atado pelo ventre e pelo apelido. É fincando os pés no solo que a ave desprende o vôo. Que esta imgem, minhas ilhas, vos seja a perpétua lembrança do único mandamento espiritual. Ser uma cocotte, cheia de todos os modos de vícios, sem trair o marido, nem sequer com um olhar - a volúpia disto, e souberdes consegui-lo. Ser cocotte para dentro, trair o marido para dentro, está-lo traindo nos abraços que lhe dais, não ser para ele o sentido do beijo que lhe dais - oh mulheres superiores, ó minhas misteriosas Cerebrais - a volúpia é isso.

Por que não aconselho eu isto aos homens também? Porque o homem é outra espécie de ente. Se é inferior, recomendo-lhe que use de quantas mulheres puder: faça isso e sirva-se do meu desprezo quando .... E o homem superior não tem necessidade de nenhuma mulher. Não precisa de posse sexual para sua volúpia. Ora a mulher, mesmo superior, não aceita isso: a mulher é essencialmente sexual.

DE CASTIGO.

Pra evitar confusões e maremotos, joguei-a por aqui. Está em período de silêncio profundo, morrendo de medo de bicho-papão e com imensa vontade de matar todos os dias uma bruxa fedelha. Por isso, o lugar certo é esse abismo negro, onde está vetada a entrada de pessoas malvadas, e feiticeiras desalmadas. Ninguém pega nada aqui, tudo é pescado conforme a leitura. Qualquer semelhança com sua vida real ou virtual, é mera imaginação, "coisa de sua cabeça cheia de caraminholas".

Ela, ajudante de Guarda-livros, Palova. Eu, Beatriz, a posta-restante, e capitã-mor da Nossa Biblioteca Marítima. Uma, mar de mim, a outra - Palova, sempre será oceano de dentro. Lembrem-se: Ambas pessoas inexistentes, propriamente falando, inventadas para poupar o esforço e o incômodo de viver, pois de tudo sempre fica uma dúvida, e os sentidos são muitos.

Nosso estado de Espírito nos obriga a trabalhar bastante, sem querer, neste blog-livro-possível, onde exprimimos e dizemos o que não sentimos, pois fingimos tanto que nos conhecemos muito. Duas almas caminhando por aqui - semiheterônimos, porque não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Aqui o real é o Oceano de Dentro, Mar de Mim, que criou em si várias personalidades. Tanto se exteriorizou dentro de si que dentro de nós não existe senão exteriormente. É este Blog a cena viva onde passam duas atrizes representando várias peças, nos fazendo de nada, para podermos ser tudo.

Oceano de Dentro, Mar de nós. De mim.

PRA GERBERA QUE DESCASOU.

Tudo é ruim por aqui. Fui levada pela maré, encalhei nesse rochedo, e longe de ser Gilbraltar, me sinto Ariadne à espera de Dioniso; não querendo nada, a não ser aquele menino, que de forma displicente invadiu um dia meu tempo, sentou em minha cama e surrupiei um beijo seu. Os deuses andam jogando comigo, meu pensamento parece estar em Dado. Será que é marcado, destinado a acontecer? Desatino dessa hora... Ando assim, me contradizendo, de repente porque contenho multidões. E uma com certeza, está na mesa de apostas, com a cabeça em Dado. Não, não sou inconstante e nem volúvel. Foi você que se afastou de mim. Também não peço sua compreensão - o que eu quero é mais simples, só você perto de mim. O eu posso dizer, além de tudo que vai por aqui dentro - "Sou o amor que não ousa dizer o nome"... "Eu agora - que desfecho!Já nem penso mais em ti...Mas será que nunca deixo...De lembrar que te esqueci?" Um desabafo. " ...Você vai pagar e é dobrado, cada lágrima rolada, desse meu penar" Disso eu tenho certeza, apesar de você ser assim..." ...Levou os meus planos, meus pobres enganos, os meus vinte anos, o meu coração" Fico pensando em como vai ser o meu futuro ; "... Nunca mais vou fazer o que meu coração pedir; Nunca mais vou ouvir o que o meu coração mandar"."...Sobrou desse nosso desencontro, um conto de amor, sem ponto final". "...Eu sei que flores existiram, mas que não resistiram a vendavais constantes". "... Você sumiu no mundo sem me avisar e agora sou quase-uma- louca a perguntar o que é que a vida vai fazer de mim". ... Tua imagem permanece imaculada em minha retina cansada, de chorar por teu olhar"... "...Sou agora no mar dessa vida um barco a vagar..." " Você já navegou mares tão diversos e eu fiquei aqui sem versos, e eu fiquei em vão.." Assim, envolta em jogos de "sorte", encruzilhadas e destino maroto, peço um instante pra ser feliz. Vem... ::: Não desças os degraus do sonho Para não despertar os monstros. Não subas aos sótãos - onde Os deuses, por trás das suas máscaras, Ocultam o próprio enigma. Não desças, não subas, fica. O mistério está é na tua vida! E é um sonho louco este nosso mundo... :: De repente eu me perdi nesse sotão escuro, desejando sua boca em meu seio mais uma vez, deslizando suas mãos pelo meu corpo, sua respiração sôfrega, quero você... Faz falta cada légua de distância que você toma. E tudo o que ficou foram lembranças e palavras. De algo que você disse e nunca cumpriu. De você, tenho tanta raiva. E tanto sentimento parado. Agora sou eu, sozinha, a caminhar nesse silêncio. De mim, apenas Gérbera amarela, na escrivaninha muda. Quem sabe quando volto a florir por aqui.


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Contribuições Especiais:
A RITA - Chico Buarque; CANÇÃO DA VOLTA - Ismael Neto/Antonio Maria; DESENCONTRO - Chico Buarque; JOÃO E MARIA - Chico Buarque/Sivuca; LÁBIO QUE BEIJEI - J. Cascata/Leonel Azevedo; Lembranças - Benil Santos e Raul Sampaio; Lua cheia, chico buarque.

Roupa no Varal.

Lógico que o post abaixo termina numa inverdade. ESSA PROMESSA DE NÃO MENTIR PRA VOCÊ me rende muita dor-de-cabeça. E superação de limites.

Probido pisar na grama

Todo mundo que cultiva sonhos deve saber o quanto é horrível deixar de acalentá-los por causa de alguém que, num átimo de orgulho e irreverência pela sorte do outro, resolve arrancar e destruir toda a plantação do seu jardim. Porque a gente começa a fazer um jardim, planta ali esperança, rega com carinho, visualiza os amores-perfeitos crescidos e coloridos, todo dia procura demonstrar o quanto aquele cantinho é querido e..., de repente, surge das trevas a nuvem negra, querendo e já fazendo a ação de detonar o lugarzinho-sonho, que atraía tantas borboletas... Isso é maldade! Portanto, não pisem em grama alheia por causa desse mister, muito menos se você ajudou a enraizar muitas flores no sonho.

Falo isso de cátedra: já vivenciei situação onde certo alguém trouxe palavras numa linda caixa. Durante semanas, foi aquela paixão, tanto sentimento. E de repente, por causa de uma chuva de meteoros, fechou a porta e arruinou o jardim. Pegou a borracha, e de um dia para outro, apagou todas as letras, surrupiou o amor, levou embora o sol acolhedor, assim - sem segunda chance. Isso me deixou sem fala, com uma bolota dentro do estomago, do tipo daquelas que corróem o gato, que quando se limpa, vai juntando pelos e pelos, até ter que vomitar aquilo tudo. Às vezes provoca engasgamento - e eu estava sofrendo disso! Pronto: terminou. Algo que se foi, com azeite de oliva. Eu abomino pessoas que são puramente "palavras" - e deixam de ser o que falaram, assim, ao sabor do vento. Se ainda fosse coisa do tempo... Se dissesse que foi pouco sentimento... Fecho aqui: não preciso mais de explicações - o caso não interessa. Arquivado. Há pessoas assim, e agora muito distantes de mim. Nunca mais, outra vez, um esbarrão...

Agora passou um minuto dessa decisão difícil e cruel, e bem...
Pra começar, o que será que ele ainda anda fazendo por aqui? Na minha vida e na minha mente. Acho que esqueci de acima dizer o de praxe: de agradecer pelo quanto foi importante na minha vida e que por este motivo tive que abandonar sua causa. Não quis que fosse difícil, mas não foi uma despedida (não do jeito que imaginei), sei que o que parece fácil demais, deixa ainda mais extenso o caminho para percorrer depois. Difícil a decisão de parar ou de lutar, difícil enfrentar a opção de desistir, talvez da missiva derradeira, principalmente quando se trata de sentimentos "urgentes e eternos". Escrevi tudo e tanto nesses últimos dias, ainda há muito mais, há vida – paixão, loucura, exorcizei meus demônios, estou bem...

Há opções na vida que nos mudam para sempre. Difícil encontrar e abdicar da vida diferente daquela que se tem... Mesmo assim meu desejo é o de permanecer firme em meu caminho, sabendo que ele estará sempre aqui, impresso. Enquanto sua "flor" saracoteia por outros mares... Ele mudou minha vida, para melhor e para sempre. Reacendeu o que nesses últimos tempos eu havia deixado se apagar, porque achei que era "mesmo assim", e talvez eu nem tivesse salvação... Nunca tive medo de ser feliz, nem tenho inclinação para a desgraça – tudo há de acontecer por um bom motivo!Cresci e isso me fez melhor, mais forte. Sou predestinada e obstinada, sou merecedora de tudo o que é bom na vida. Já estou "lá" e vou ainda mais longe...

Lhe reconheço de encontro passado e agradeço aos Deuses e as Deusas pela oportunidade de tê-lo sentido nessa vida... Um dia, quando tudo for mais calmo, vou lhe reencontrar, tenho certeza! Ele é querido e amado em virtude de um sentimento "eterno", incomensurável, irracional e incontrolável . A gasolina estará aqui para sempre no oceano azul. A única certeza que tenho é de que EU "teria ficado"... por ele... Gostaria de poder dizer "obrigada por trazido tanto e mais para a minha vida". Mas volto a minha promessa: por que foi tão fácil assim se livrar de mim? Queria tanto que o meu não fizesse ele alvoroçar, correr atrás do que tanto quis.

Alguma coisa morreu dentro de mim com a renúncia dele. Não recortem, não colem, não ousem me denunciar com este texto... Ele é para mim, para nossa memória, para a lembrança - se é que poderá me esquecer... Porque eu, depois disso, estou tremendo: é só ele me dizer vem, que volto, e nunca mais esbarrão: vai ser o Senhor Encontrão, Abalo Sísmico. Coisa de Paixão.

Murmurando entre desassossegos de sua Alma, débil sonhadora, em sua felicidade trouxa.

Ballade pour Adeline.

Amore che vi, eni Amore che vai...
Scusami, Amore. Ando à solta nesse Universo, e constato que ondulando pelas ruas, chamo bastante a atenção. Meu quadril vai e vem, cruzo pernas ao caminhar, quem sabe pra provocar, a bruxa danada que mora em mim atiçando paixões, me fazendo desejada e um pouco feliz... Dos olhares, carrego o desejo de cada um deles, e dos amores que desperto, levo embora todo sentimento, que há de me curar desse fado de caminhar entre espinhos, sem ti. Eu sei que foi minha escolha, que os passos que nos separaram equivalem a toda uma receita de quindim, mal elaborada, e feita às pressas, surrupiada do caderno de receitas de sua mãe. Gosto de doce, que provoca amargor quando desce vagarosamente por minha garganta, aí que saudades de seu olhar, de suas palavras, desejo tão grande de ti!

Ballade pour Adeline. Quando foi mesmo que tocasse meu coração, Amor? Carrego tão grande marca de seus dedos, apertando meu coração. Todos os dias olho através da janela, minha vida derramada nessa cama king-size, ao lado de outro tipo de amor, seguro e tão preso em mim. Posso eu sonhar contigo, sabendo que também habita outro quarto, ao lado de outra dama, tão distante de mim?

Em algum momento da minha vida promete conceder nova dança? Preciso de acalanto, esse amor tão imenso, quero você ao meu lado, não por uma balada, mas pra vida inteira, ou pelo menos, o que me resta. Amore, Scusami se de repente, soltei-me de seus braços, lancei-me em corrente contrária, amarguei não olhar para trás e te deixei ali, plantado em meio ao salão, vazio de passos meus. Naquela época eu queria tanto uma casa, e você o que podia me dar, além de uma balada, amor e lágrimas? Hoje eu resido nessa mansidão de pedras, e espero por um momento, ter você, além de dentro, perto de mim.

ANTÍGONA.

Antígona é um sonho. Pesquisei tanto sobre esse mito, quis tanto fazer essa dissertação para a final da pós em Psicologia Forense. "Leis ou Valores Morais", "Camelos são aceitos pela sociedade, não podem virar alvo de cacetetes". Aí tudo naufragou, retrocedi, voltei atrás. Mais uma desistência, capitão. Essa pós, não, não quero mais não. Quero o Mestrado.

Houve a Antígona antiga, a de Sófocles e a de Eurípides, figuras antes de tudo dramáticas de um mundo para sempre desaparecido. E há as Antígonas de nosso tempo, que habitam nossos palcos nacionais e internacionais, após trinta séculos de silêncio. Para os gregos que a descobriram em Atenas em 442 a.C., Antígona deve ter surgido como uma figura marcada pelo destino familiar e predestinada a uma morte trágica.

Mas hoje, para nós, o que diz, murmura ou clama a personagem de Antígona? Ela é, na maioria das vezes, representada como uma revoltada que se recusa a obedecer ao édito de Creonte, que proibiu qualquer rito fúnebre para o cadáver de Polinice, uma verdadeira pasionaria diante da ditadura de um poder injusto e criminoso. Na realidade, o que aparece mais claramente, mais indiscutivelmente na história de Antígona, é que nada a predispunha a se erguer dessa maneira contra o poder e a autoridade de seu tio Creonte. Noiva de Hêmon, o filho de Creonte, estava destinada a casar-se e dedicar-se à sua prole.

Ediouro.

Mas a guerra, os homens e talvez os deuses decidiram diferente. Os dois irmãos de Antígona se enfrentam e morrem diante das muralhas da cidade. A máquina infernal é, então, engatada: ordem sacrílega de Creonte relativa ao cadáver de Polinice e recusa de Antígona a dobrar-se a ela, mesmo que ao preço de sua própria vida. Porque ela diz "não" de maneira espontânea, firme, calma, mas resoluta. Com uma certeza inquebrantável. Ao pronunciar esse "não", ela sabe o que vai perder: todo o seu futuro de mulher, mãe e esposa. Mas nada poderá detê-la, pois só o que interessa então é o combate contra a injustiça. Insisto neste fato: Antígona não é uma insubordinada, uma revoltada de nascença, muito menos uma militante dos direitos humanos.

Ela, simplesmente, diz "não", pois submeter-se seria se desobrigar do que deve à memória do irmão, e também à de todos os outros mortos que corriam o risco de ter o mesmo destino. De seu "não" ela não faz de modo algum um princípio, mas um clamor, um clamor para manter-se fiel a si mesma e à sua consciência. Sim, sua consciência. A palavra não figura na obra de Sófocles, mas está o tempo todo presente no diálogo crucial que ela trava com Creonte. No que ela é a perfeita, premonitória ilustração da frase de Albert Einstein que eu, quando estudante, mantive durante muito tempo pregada na parede de meu quarto, "Não faça nada contra a sua consciência, mesmo que o Estado lhe peça".

É por isso, penso, que no decorrer dos séculos outras Antígonas surgiram. Seu clamor tornou-se um brado universal que não pertence mais a um clã, uma família, uma cidade ou uma pátria determinados. 0 brado de todos aqueles, de todas aquelas que não se resignam diante da arbitrariedade, da violência, da cegueira dos homens e do poder. Eis porque, há algum tempo, quando da montagem da Antífona de Bertolt Brecht em que o coro era interpretado - com letras e cantos - por um grupo musical argentino, o Cuarteto Cedrón, eu pude apresentar aquele encontro entre a Grécia, a Alemanha e a Argentina como parte - e veremos por quê - da perfeita e pura tradição da mensagem, mais do que nunca viva, de Antígona.

Aqui, Antígona canta. Ela vem até nós com seus lamentos, gritos, lágrimas salmodiadas, indo muito além do verbo e da tragédia para atingir a graça e a gravidade do canto. Os coros das tragédias antigas eram interpretados em uníssono ou em oitavas, pois a música coral antiga ignorava a polifonia. Aqui, os coros de Antífona são também cantados, mas, grande e bela inovação, os cidadãos de Tebas que os compõem, aqueles tebanos lançados ao fundo dos dramas que os ultrapassam, cantam sobre melodias polifónicas concebidas pelo Cuarteto Cedrón, vindo do outro lado do Atlântico.

E a primeira vez que dois continentes e dois séculos tão distantes um do outro - a Grécia de Sófocles e a Argentina de Juan Cedrón - se encontram e se aliam para formar o coro de Antígona. Aliança inesperada mas benéfica, pois nos lamentos, cóleras e pesares de Antígona, naqueles gritos, naqueles cantos do mundo antigo, ela insufla lufadas de ar do novo mundo. Percebemos, então, que esta obra Antífona mesmo sendo de fonte puramente grega, pode ter estuários infinitos e se misturar sem atrito e sem inconveniente algum com as contribuições de uma cultura moderna.

Ocanto de vitória que abre a tragédia, o hino ao homem que lhe dá continuidade, o hino ao amor que a ele se segue, os pungentes lamentos de Antígona condenada a morrer sem nada ter conhecido nem da vida nem do amor, e o sombrio inventário das vítimas da loucura e da tirania dos reis, aquela firme, lúcida, impiedosa denúncia da violência e da guerra se reencontram aqui, fortemente, intensamente trazidas pelas vozes solidárias do Cuarteto Cedrón.

Portanto, cantos de Antígona e não canções. Não confundamos o que vem do coração com o que vem dos lábios. O que se ouve claramente aqui é a voz de uma mulher, ou melhor, de uma adolescente, a primeira a ter coragem de dizer "não" ao sacrilégio e à tirania, e as de intérpretes contemporâneos vindos de um país em que, há nem tanto tempo assim, outras irmãs chamadas de as "loucas de Maio" também reclamavam o corpo do irmão desaparecido. Estranha e fecunda coincidência da História? Em todo caso, desse encontro carregado de sentido nasceram estas núpcias suntuosas e musicais entre dois continentes e duas épocas.

Melhorei depois disso? Eu escrevia muito.

Muito (quantidade) rs.

Inveja, a Irmã Mitológica
Emoção sorrateira, maléfica e, sobretudo, insaciável, pois deseja sempre a aniquilação do outro, vorazmente, para Kant, a inveja seria uma admiração que se dissimula. Esta emoção, inveja, é para Sanford "um dos principais incitadores da maioria dos artifícios femininos para se alcançar algo que deseja, como o poder, o amor e a felicidade. Quem vive o Mito da Irmã só sabe utilizar-se das artimanhas de Afrodite, uma das três faces da Grande Mãe, pois sua personalidade multifacetada é ainda desconhecida de si próprio. Não sabendo quem é, também não sabe quem amar... a não ser o pseudo amor que devota a si, vendo na sua figura um objeto de adoração, a quem todos deveriam ouvir, seguir e nutrir afeto. Porém nem "a pessoa que vive o dilema do mito da Irmã" consegue verdadeiramente encarar-se no espelho, pois sabe de todos os seus fracassos e convive com sua história real, carregando-a como sombra...

Lúcifer é o protótipo da inveja pelo complexo de superioridade. Ele queria ser Deus e se perguntava: " Porque ele e não eu?" Na história de Aglauros, que é um dos mitos narrados por Ovídio nas Metamorfoses, novamente temos o mito da Irmã desenvolvido. Aglauros é a irmã de Hersé, cuja beleza extraordinária atiça o desejo do deus Hermes. Este pede a Aglauros que favoreça seus amores; a moça concorda, mas exige algo em troca - um punhado de moedas de ouro. Isto irrita Palas Atena, que já detestava a jovem porque esta a havia espionado numa outra ocasião. Não tolera ver a mortal recompensada por outro deus; decide vingar-se, e a vingança é terrível: Palas Atena vai até a morada da Inveja e ordena-lhe que vá "infectar com sua baba a jovem Aglauros".

"A inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol. Nenhum vento o atravessa; ali reinam a tristeza e o frio, jamais se acende o fogo, há sempre trevas espessas[...]. A palidez cobre seu rosto, seu corpo é descarnado, o olhar não se fixa em parte alguma. Tem os dentes manchados de tártaro, o seio esverdeado pela bile, a língua úmida de veneno. Ela ignora o sorriso, salvo aquele que é excitado pela visão da dor[...]. Assiste com despeito aos sucessos dos homens, e este espetáculo a corrói; ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesma, e este é seu suplício". Quando entrou no quarto de Aglauros, [a Inveja] executa a ordem recebida. Coloca sobre o seio dela uma mão manchada de ferrugem, espeta seu coração com farpas pontiagudas, lhe insufla um vírus pernicioso, faz correr em seus ossos e espalha pelos seus pulmões um negro veneno[...]. E põe sob os olhos dela, a irmã, denun ciar tudo, como um crime, ao pai inflexível... a fortunada união desta irmã, a imagem sedutora do deus, exagerando tudo. Irritada com o que vê, Aglauros sente a mordida de uma dor secreta; ansiosa, ela geme noite e dia, e, no ápice da miséria, se consome lentamente[...]. A felicidade de Hersé a consome devagar[...]. Muitas vezes quis morrer, para não mais ver tal espetáculo. O que Aglauros vê é a "afortunada união da irmã, "a felicidade de Hersé".

Este ponto é capital: Hersé agora possui algo(o amor do deus) que faz a sua felicidade e a completa, no sentido literal da palavra. É absolutamente essencial compreender que Aglauros não quer o amor do deus, tanto que chega a pensar no suicídio para não ter de contemplá-lo. Mais uma vez, o importante é privar a irmã do que nela é invejado ("denunciar tudo no pai inflexível"). Reparem na associação da inveja com o olhar ("assiste", "o olhar não se fixa"); este tema é clássico, e ainda não encontramos uma explicação para ele. Os outros elementos nos são conhecidos: a Inveja se alegra com a dor de outrem, e a realização de seus propósitos tampouco a deixa feliz – ao dilacerar as felizes, ela se dilacera a si própria. Esta é uma forma poética de dizer que a Inveja contém desejo, mas não se reduz a ele; o desejo de privar outrem de sua felicidade é nela mais decisivo do que obter a posse da coisa invejada.

Para entender e poder compreender melhor quem padece desse "mal" do mito da irmã, mister se faz aqui 3 distinções: ciúme é querer manter o que se tem; cobiça é querer o que não se tem; inveja é não querer que o outro tenha. A inveja é um vírus que se caracteriza pela ausência de sintomas aparentes. Só a inveja se esconde, por isso sorrateira, não é explícita, o que todos vêem aparentemente é a imagem que Psiquê tinha de suas irmãs: mulheres que a amavam e lhe queriam muito bem. Nelson Rodrigues já dizia: "há coisas que o sujeito não confessa nem ao padre, nem ao psicanalista, nem ao médium, depois de morto". Uma delas certamente é a inveja. Essa dama indigna, de má reputação e péssimo caráter, sorrateira, capaz de, com um simples olhar, murchar plantas e secar pimenteiras, pode estar agora ao seu lado, ou fazer parte de algum grupo amigo. Quem sabe não encontramos tal criatura em alguma chat-lista, se fazendo passar por escritora, quando jamais publicou nada, nem concluiu o que tanto alardeia?

A iconografia da Inveja foi sempre pobre e feia: seu símbolo é a serpente. Porém nem todos que vivenciam esse mito na sua vida denotam impressão feia - são peritos em esconder o que são, e forjar o que sentem, destruindo àqueles que possuem a personalidade que jamais tiveram. Esse é o objetivo soturno. Aquela que vive o mito da Irmã sofre de "Dristitia de alienes bonis" (famosa frase de São Tomás de Aquino que define a "tristeza" que se tem em relação às " coisas boas dos outros"), e nesse sofrimento, cria ódio e amargor. Mesmo quando a inveja colabora para a formação de algo agradável, como ocorreu com Psiquê, onde as Irmãs verdes de inveja a levaram a conhecer o Amor de verdade, e não a mera adoração por um deus, não devemos nos iludir: dos invejosos não há nada para receber, pois tudo o que possuem ou foi roubado, furtado ou emprestado.

Conta a história que na Ántiga Grécia já havia a obsessão pela inveja, usando o verbo "baskainein" para enfeitiçar com o mau-olhado. Os romantos também fascinavam, ou seja, empregavam o termo "fascinare" no sentido de dominar magicamente com o olhar, acreditando que, não apenas as pessoas , mas também animais como a cobra , crocodilo lobos e gatos detinham o poder de fascinar. Fascinando ou enfeitiçando, acreditavam que "iriam apagar a chama do sucesso do semelhante". O mau-olhado está na própria constituição etimológica da palavra inveja.

Invidere em latim, significa olhar enviesado, de soslaio. E olhar enviesado é "mau-olhado" - é o fazer mal , causar malefícios com o olhar , projetar impulsos destrutivos em alguém. Ainda que o sentimento do invejoso seja um estado de espírito que mobiliza vários sentidos, o seu poder simbólico está concentrado no olhar. O filósofo Francis Bacon chamava a inveja de "ejaculação do olho". Quem já não reparou em alguém que, fazendo caras e bocas, usa o olhar para "demonstrar" o que é, ou a força que tem? Pois é, provavelmente você estava diante de alguém que não suportaria ver você vivendo o que ela sempre quis.

Nas representações artísticas, há exemplos clássicos da associação do olhar com a inveja, como na Divina Comédia, onde Dante concentrava o castigo divino nos olhos, colocando os invejosos no segundo patamar do baixo purgatório, envoltos em cilício, colados em uma parede rochosa com as pálbebras costuradas com fios de aço. Embora algumas vítimas clássicas da inveja, como Abel e Otelo, não tivessem percebido as artimanhas e maquiavelismos de seus algozes, Caim e Iago, podemos desenvolver defesas e disfarces, às vezes sem sentir, diante de tais vis criaturas. As moças, antigamente, eram educadas para se defenderem dos elogios à queima-roupa. Quando uma colega lhes dizia "Você está linda!" , deveriam responder : "São os seus olhos." Atrás da delicadeza, havia o artifício de devolver ao olhar da observadora, o que de ruim ela pudesse estar desejando.

Textos clássicos da antropologia dizem que "Inveja tem a ver com conflito: entre vizinhos, entre papéis sexuais, na família, na hierarquia social, muitas vezes entre mulheres". "A inveja é uma forma ativa de energia que se transmite pelo olhar e pela vontade". O filósofo Demócrito acreditava que o invejoso liberava "átomos raivosos" e "maus". Heliodoro e Plutarco se referiam a "flechas envenenadas" , "ar envenenado" , "cheiro" e "vozes". Para os gregos antigos , raios e relâmpagos faziam parte da fúria da inveja. Também a tradição judaica acreditava que o mau-olhado concentrava dentro de si o "elemento fogo" e Francis Bacon , muito mais tarde , chegava a falar de "raios venenosos" que a inveja emitia e que o invejoso disparava nos outros. Sócrates, um invejado em seu tempo, dizia que a inveja era uma espécie de dor, o invejoso era quem se aborrecia com o sucesso dos amigos.

Platão considerava seu mestre uma vítima da inveja e chegou a escrever na Apologia que Sócrates também estava convencido de que tinha sido condenado por "calúnia e inveja de muitos". Santo Agostinho via na inveja "o pecado diabólico por excelência" e dizia "da inveja nascem o ódio, a maledicência, a calúnia, a alegria causada pela desgraça do próximo e o desprazer causado por sua prosperidade. Fácil identificar agora quem vive o Mito da Irmã: geralmente são as pessoas que sabem caluniar, difamar ou desgraçar todos aqueles que passaram pelo seu caminho, pois o invejoso além de detestar saber que o outro não está mais na situação sofredora que deveria estar, odeia quando descobre que conseguiu subir acima de sua pessoa. Não se sente inveja daqueles que estão abaixo de nós.

O que pode desencandear o monstro verde da Inveja, e a aparição real ou virtual da irmã, são as falas venenosas, que demonstram a intensidade do desejo com relação ao objeto que perdeu. Enquanto estiver quieta haverá apenas uma frustração por não possuir o objeto. Também se percebe a inveja quando, na situação, a coisa desejada está escassa. Atualmente o que encontramos todos buscando é um homem ou mulher. Este seria o caso, por exemplo, quando uma pessoa, que tem uma posição semelhante à nossa, possui alguém, e a posse é vista como adquirida, não através de mérito ou situação especial, mas de maneira "desleal", uma traição. Aqui a situação se complicará, pois além de estarmos diante de alguém dominado pelo mito da Irmã, insana e paranóica, também carregará o ressentimento, acarretado por alguma atitude passada, relativa à pessoa que inveja. Dupla carga de emoção invejosa, gerando ódio desenfreado.

São preocupantes não tanto aquela inveja, que todo mundo de alguma maneira pode sentir, em alguma fase de sua vida, mas os casos em que a pessoa não encontre "nada a elogiar ou a valorizar em outro indivíduo e só acha dúvidas : "bem, estava bom, mas...". Entre as formas de manifestação invejosa, se detém, hoje em dia, na "provocação", que ocorre quando alguém inveja, por exemplo, "a tranquilidade e a paz de espírito de outra pessoa e se põe a cutucá - la, até que ela perca a calma."

"Quem se esforça para despertar inveja é também invejoso", essa ventura única que consiste em parecer aos outros invejável, aparece em textos e entrevistas. Há vários provérbios russos com esse mesmo sentido, citados por Helmut Schoeck em L’envie. "A inveja transforma uma folha de grama em palmeira" ; "no olho do invejoso, um cogumelo vira palmeira"; "o olho invejoso faz de anões elefantes".

Portanto, a "Irmã", como no mito de Psiquê, sempre descreverá sua vida como "maravilhosa", e esforçar-se-á para que outros a invejem, colocando em eloqüência muitas coisas que faz, conhecimento que tem, viagens e prazeres que possui. Só assim consegue apaziguar a dor que a inveja provoca, corroendo seu íntimo, "numa ânsia em aniquilar psiquê, ou a Alma".

Bibliografia

* Klein, Melaine. Inveja e Gratidão.
* Ventura, Zuenir. Inveja mal secreto.
* Krech, David. Elementos de Psicologia I.
* Mezan, Renato. Ensaio sobre a Inveja.
* Filme: "Seven – Os setes pecados capitais", de David Fincher.

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"Sucesso no Brasil é ofensa pessoal." (Tom Jobim)

"A inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol" (Ovídio)

"... a inveja destrói como câncer." (Bíblia, Provérbios 14:30)

"Não há ódio mais implacável que o da inveja." (Arthur Schopenhauer)

"O invejoso chora mais o bem alheio que o próprio dano." (Francisco de Quevedo)

"A emulação é a paixão das almas nobres; a inveja, o suplício das almas vis." (Jean François Marmontel)

"Podemos descrever o nosso ódio, o nosso ciúme, os nossos medos, as nossas vergonhas. Mas não a nossa inveja." (Francisco Alberoni)

"A inveja é uma merda. Os invejosos também." (Adesivo de automóvel)

CIRCE.

Feitiçaria e Sedução: Circe.
Circe, figura legendária da mitologia grega, é muitas vezes retratada como filha de Hélio, Deus-Sol, e da ninfa Pérsia; em outros relatos aparece como filha do Dia e da Noite, ou do Sol (Hélio) e da Lua. Em todas elas temos uma figura majestosa, feiticeira ciente de seus poderes, grandiosa mulher reinando em uma ilha, tendo aos seus pés muitos animais. Exerce um grande fascínio sobre quem a lê, talvez porque reuna em si prazeres e embustes, não revelando a sua identidade a ninguém.

Dizem que, por ter envenenado seu marido, o rei dos sármatas, que habitava o Cáucaso, foi obrigada a exilar-se na Ilha de Ea, localizada no litoral oeste da Itália. O nome da ilha, Ea, traduz-se como "prantear", e dela emanava uma luz tênue e fúnebre. Essa luz identificava Circe como a “Deusa da Morte”, pois, ali, os que aportavam jamais retornavam. Era também associada aos vôos mortais dos falcões, e assim como estes, Circe circundava suas vítimas para depois enfeitiçá-las. O grito do falcão é "circ-circ", e é considerado a canção mágica desta ambígua bruxa, que controla tanto a criação quanto a dissolução. Sua identificação com os pássaros é importante, pois eles têm a capacidade de viajar livremente entre os reinos do céu e da terra, possuidores dos segredos mais ocultos, mensageiros angélicos e portadores do espírito e da alma, portanto, alusões aos seus poderosos encantos e proezas. Cada homem que vinha, por mar, naufragar em sua ilha, Circe, depois de o alimentar e conhecer, rodeando-o de mimos e ternura, transformava-o em animal. "A besta que jazia oculta no ser masculino", ou a alusão a tudo o que aquele homem fora e que algum dia fez.

Já outros mitólogos insistem na versão de que todos eram enfeitiçados e transmutados em porcos, o que seria "A verdadeira essência humana". O que temos é que, nessa transformação de homens em animais, não havia sentimentos. Para Circe não havia amor nem expectativas, porque todos ela conseguia; quando se quer alguém, cai-se em seu poder. Em um mundo sem amor qual é a finalidade de qualquer conquista? Bonita e convencida, dotada de poderes ocultos e mágicos, jamais alguém a havia desafiado: nenhum mortal confrontava-a, e assim essa bruxa pairava sempre acima como uma nuvem negra...

Porém, falsa presunção dessa encantadora moça: a rocha sólida e a tênue facilmente podem mudar de lugar, e tudo o que fazemos vemos outro fazer. Foi assim que sua sorte e magia sopraram outros ventos e o herói de muitas aventuras, Odisseus ou Ulisses*, e 23 membros de sua tripulação desesperada desembarcaram na Ilha Ea, clamando por água e alimento. O único que retorna conta a Ulisses o que o canto doce e belo de Circe havia feito aos demais: conduzindo-os como por encanto, ao interior de seu castelo, onde lhes serviram um banquete e foram ofertados grandes taças de vinho. Depois disso, todos foram transformados em animais, que logo se juntaram a muitos que ali viviam - lobos, leões, porcos - todos homens metamorfoseados pela arte encantatória de Circe.

"Amar é ser transformado, ou transformar", já contava o mito de Dafne em sua metamorfose. Circe usava de sua magia para desviar o curso de muitas vidas, usando práticas encantatórias, tentando domar homens com sortilégios e conquistar amor com feitiços. Sabia como tirar proveito da luxúria que queimava esses homens e, fracos demais, arrastava-os até seu castelo. Quem ousaria afrontar esse mito, essa lenda cruel, que diziam possuir atos mágicos indefensáveis? Há quem fugisse dela a toda pressa, mas não Ulisses. Ao tomar conhecimento do que tal criatura havia feito a seus homens e contando com a ajuda dos deuses, dirigiu-se à Circe e seguiu à risca os conselhos de Hermes, conseguindo assim resgatar sua tripulação e desfazer o encantamento que os tinha convertido em animais. Porém, nesse episódio é Circe quem sai chamuscada, pois acaba se apaixonando por Odisseus, detendo-o com ela por um ano, até o momento em que o herói resolve novamente empreender seu retorno à casa, saudoso de Penélope e seu filho. A magia, astúcia, ternura ou amor devotado de Circe, Grande Feiticeira, não havia libertado seu coração do amor que sentia por sua mulher e família.

Podemos começar aqui, a tecer metaforicamente, a influência que exerce sobre os homens os encantos de uma mulher. Toda mulher traz dentro de si uma feiticeira, poder que seduz e arrasta a vítima a seu altar para ser devorada. Circe era um demônio sedutor ou apenas uma mulher ciente de seu poder de sedução? Não há julgamentos quando falamos em sentimentos, mas este mito mostra que quando uma mulher resolve usar sua força interior, mágica e inesgotável, pode enlouquecer a cabeça de um homem, principalmente se está determinada a usar todo o seu potencial sexual.

Inconscientemente, temos homens transmutados em animais, revelados de acordo com a sua natureza: ora belos cachorrinhos atados à coleira; grandes leões ladeando sua fêmea; macacos tentando atrair a atenção da feiticeira... Os homens movidos tão somente por fortes desejos sexuais nunca estarão livres de serem explorados por mulheres que somente buscam satisfações financeiras, pois estas usarão todos os subterfúgios que conhecem, toda magia oculta que lhes foi revelada, encantamentos ou feitiços, qualquer coisa para alcançar seu intento.

Esse lado prostituta de todas as mulheres foi que levou o regime patriarcal romano a caçá-las como bruxas e de onde origina-se a afirmação de que os homens são vítimas inocentes da influência maldosa e perniciosa feminina. O que podemos ver claramente é que no arquétipo de Circe encontramos a ambigüidade: tanto a figura de uma mulher independente, consciente de seus desejos e sua feminilidade, representando o amor, a paixão irracional e um poder incrível, nos mostrando nossa força interior, que não só representa a sexualidade mas também os tesouros do inconsciente, como também o demônio sedutor, que, alucinado, só quer porque não teve, ama porque não lhe tem amor. Deseja sempre o impossível, o desafio de conquistar é o que lhe move.

Encontramos em textos que Circe nos diz que depois da dor vem o saber, do saber surge o crescimento, o crescimento nos leva à transformação, da transformação emana o poder e o poder pode nos conduzir à ruína ou à glória. E é essa a grande escolha de uma feiticeira ou bruxa: como exercer a magia e a sedução que encontrou dentro de si? Como transformar sua vida sem prejudicar ou metamorfosear outras vidas e mesmo assim ainda construindo per e para si o seu caminho? Questões que somente são respondidas quando, assim como Circe, aporta um herói em nossa praia, trazendo consigo a coragem e o sentimento que ao mesmo tempo espalhamos e tememos...

Quando têm velocidades diferentes, os caminhantes se despedem; Ulisses e Circe tiveram um ano de amor. A grandiosidade de Circe é exercida no final do mito: o caráter dessa deusa feiticeira, que aceita o adeus do homem amado e ainda o ajuda a trilhar o caminho para chegar são e salvo à sua pátria e à sua mulher. Na minha visão, somente quem tem dentro de si um amor incondicional consegue libertar e ainda preservar o amado. Assim, Circe, com o herói Ulisses, conheceu o feitiço mais poderoso: Eros, temido até por Zeus, acertou-lhe o coração. Não podemos nos esquecer de que Eros se casou com Psiquê contra a vontade de Afrodite. Às vezes, a vontade de uma mulher (mesmo que seja uma deusa) não prevalece sobre uma paixão intensa, fortíssima, arrebatadora por outra mulher (ainda que esta outra não seja bem uma deusa...). Foi assim que mesmo com todos seus encantos e sedução Circe não venceu a outra, Penélope, porém soube aceitar e agradecer o sentimento que viveu.

Certas pessoas desprovidas de raciocínio lógico inventam para suas vidas uma verdadeira tragédia. Montam um palco de horrores nem sempre real, criam ilusões de sacrifício e entram em cena... E ainda querem que a gente participe dessa peça! Eu, de minha parte, nem na platéia. Drama mexicano ocorre em novelas; bruxas e feiticeiras sabem quando se retiram do palco, dando adeus e aos deuses aquilo que não podem alterar...

Até mesmo os melhores navios um dia ficam fora da rota. O segredo é que as feiticeiras, como Circe, têm um senso de destinação. Conhecem a trilha. E estão sempre corrigindo o curso, de novo, e de novo...

"Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Así y distingo dicha de quebranto
Los dos materiales que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto".

(Violeta Parra)
(*)personagem épico de Odisséia, de Homero.

QUANDO TERMINEI, foi para o jornal.

Embora existam controvérsias, a história toda pode ser iniciada por Diodoro o historiador, que revela que, há muito tempo, existia uma Tribo das Górgonas, um povo belicoso, semelhante às amazonas, que habitavam um local nos confins do país dos atlantes. Este povo havia sido conquistado pelas amazonas, que obrigaram a Rainha Mirina a atacar as Górgonas, incômodas vizinhas. As amazonas venceram a batalha, e as Górgonas, apesar de perderem, logo se recompuseram, e mantiveram seus costumes até serem finalmente derrotadas - primeiro por Perseu, que matou sua rainha, e em seguida por Hércules.

Também nas elucubrações de grandes escritores está contida a história de que havia no Universo uma única mortal das 3 Górgonas, Medusa, que havia trocado sua imortalidade pela beleza, numa troca de favores com Zeus. Por conta disso, vivia Medusa a se vangloriar de sua divina beleza, dizendo que até as deusas a invejavam, pelo seu rosto divino resplandescente de beleza, e cabelos que caiam encaracolados até quase tocarem o chão.

Athena, que tinha mãos calejadas de tanto carregar lança e escudo, os cabelos cortados rente quase como o de um homem, e a ausência de seios - uma imagem que evocava um mostro parecido com Esteno e Euríale, irmãs imortais de Medusa, passeando por sobre a terra ouviu uma destas provocações de Medusa. Tomada de Violenta Fúria, transformou-a num monstro, que ficaria famoso sua feiúra. Medusa continuava linda, mas sua cabeleira eram agora peçonhentas serpentes, quem sabe símbolo da Inveja de Athena de sua estonteante beleza adquirida? Com isso causava asco e temeridade entre todos...

Por outra versão da história, mais tenebrosa, Medusa era feia e imortal tal qual suas duas irmãs Esteno e Euríale. Possuia cabelos desgrenhados, grandes presas semelhantes aos javalis, mãos de bronze e asas de ouro, que permitiam que voassem. Medusa não se conformava por ser daquela forma, afinal ela era como suas irmãs com poderes anteriores aos deuses olímpicos, pertenciam aos poderes ctônicos que comandavam o planeta antes da subida dos olímpicos ao trono dos deuses. Foi por isto que ela consegui efetuar a Troca da sua imortalidade pela beleza, com Zeus.

Com sua Beleza, Medusa conseguiu chamar a atenção de deuses e homens, e imaginou que, com Possêidon, irmão de Zeus e deus dos mares, talvez fosse possível recuperar sua imortalidade e manter a beleza. Passeando pela beira do morro com vista para o mar, onde no alto existia um templo dedicado Athena, Medusa, provocou esta Deusa, demonstrando toda a beleza que continha fora de si.

Imagine você, de uma hora pra outra linda, talvez também saísse correndo pelo país esnobando a todos com tal beleza. E quem sabe não foi esse o sentimento dessa antiga força ctônica, perante aos imortais? Forças que, geralmente dotadas de feiura, com suas formas ligadas a natureza, sempre ficavam aquem dos olímpicos, perfeitos fisicamente e divinamente belos.

Quando chegou ao templo, no alto do morro, estava quente e o sol forte, e resolveu se sentar um bocadinho. Foi seu erro. Possêidon, que vinha acompanhado o andar de Medusa, já há algum tempo, quando a viu sentada, elevou-se como uma onda e caiu sobre Medusa, que, quando percebeu, estava envolvida pelos fortes braços do senhor dos cavalos. Naquele momento de volúpia, se entregou ao prazer.

Como todo coito divino é demorado, passaram eles mais de um dia enlaçados, no interior do Templo da Deusa Athena, A Virgem, que, quando soube do ocorrido, não se voltou contra o seu tio crônica, mas sim contra Medusa, e mais uma vez esta deusa da sabedoria lançou aqueles seus julgamentos machistas: deixou toda a culpa para a mulher, acreditando que o que ocorreu era fruto da insinuação dos cabelos, que voam ao vento. Assim, Transformou os cabelos de Medusa em serpentes, e para que ela jamais tivesse outro amante, ficou a maldição de que, quem olhasse em seus olhos, seria transformado em pedra.

O resto creio que todos sabem: Perseu filho de Zeus e Danae, com o auxilio de Athena e Hermes, mataram a medusa, cortando sua cabeça. Usaram para isso um espelho, assim evitando o olhar direto em seus olhos. E depois a cabeça, que não perdeu o poder de transformar quem a olhasse em pedra, foi colocada no escudo de Athena, que, onde dizem, continua até os dias de hoje. E do pescoço de Medusa, saiu por ele como um parto as avessas, Pegasus o cavalo voador, filho dela e de Possêidon.


Alguns ainda falam e estudam este poder de transformar aos outros em pedra, como Jean Pierre Vernant, no Livro, A Morte nos Olhos, que afirma:

" A face de Gorgó é uma máscara; mas em vez de ser usada para que seu portador imite o deus, esta figura produz o efeito de máscara simplesmente olhando-nos nos olhos. Como se esta máscara só tivesse deixado nosso rosto, só se tivesse separado de nós para se fixar à nossa frente, como nossa sombra ou nosso reflexo, sem que nos possamos livrar dela. É nosso olhar que se encontra preso à máscara. A face de Gorgó é o Outro, nosso duplo, o Estranho, em reciprocidade com nosso rosto como uma imagem no espelho (esse espelho em que os gregos só podiam ver-se de frente e sob a forma de uma simples cabeça), mas uma imagem que seria ao mesmo tempo menos e mais que nós mesmos, simples reflexo e realidade do além, uma imagem que se apoderaria de nós, pois em vez de nos devolver apenas a aparência de nosso próprio rosto, de refratar nosso olhar, representaria, em sua careta, o horror terrificante de uma alteridade radical, com a qual por nossa vez nos identificaremos, transformando-nos em pedra."
posted by Anna at 5:27 DU

Cassandra...
Pouco lembramos de Cassandra, a profetisa desacreditada de Tróia, quando buscamos nossos mitos pessoais. Preferimos sempre deusas fortes e poderosas, para criarmos nossa identificação individual como mulheres independentes e contemporâneas.

Os arquétipos, que são as poderosas forças interiores, ao serem personificados, enquadram-se nos mitos de Afrodite, Ártemis, Atena. Helena, Circe, Medéia e mesmo Cassandra, que igualmente são mitos ricos, cortejadas por deuses e heróis e facilmente identificados como influentes em nosso cotidiano, são ainda relevados a segundo plano por oferecerem imagens dúbias e estereotipadas.

Cassandra, que dentro de nós nunca se cala, pouco se importando se é escutada ou não, modela comportamentos e emoções, e pode representar toda a geração feminina que foi à luta para ser ouvida. Ela tem a consciência de seu dom, sabe que tem verdades para contar, mas ainda hoje encontra oposição em muitas culturas. Cassandra, ao ser imaginada e invocada, pode salvar a muitos do medo de dizer nossas verdades, do pavor de mostrar o que sentimos e o que nos corrói por dentro. Confiando em nossa Cassandra interior, aprendemos a não mais engolir as palavras, os sentimentos e as emoções, e a deixarmos fluir os nossos dons femininos, sem censuras e sem medo. Libertamos nossa heroína que jazia calada.

O mito de Cassandra começa com Príamo e Hécuba, reis de Tróia, que tiveram 19 filhos. Entre os mais moços, estavam os gêmeos Cassandra e Hélenos. Durante uma festa no templo, as crianças adormeceram num canto, enquanto os pais, que haviam bebido muito vinho, esqueceram-se delas e foram embora. Hécuba, retornando ao templo, encontrou as serpentes sagradas lambendo as orelhas dos gêmeos. Gritou, aterrorizada, e imediatamente as serpentes desapareceram em meio a uma pilha de louros. Desse dia em diante, Cassandra e Hélenos passaram a possuir o dom da profecia.

Uma outra história conta que um dia Cassandra adormeceu no templo, e Apolo, aparecendo, prometeu-lhe o dom da profecia em troca de seu amor. Cassandra aceitou o dom, mas depois não cumpriu o trato. Ofendido, Apolo pediu-lhe um beijo; ela consentiu. Ele cuspiu em sua boca, assegurando-se de que jamais acreditariam em suas profecias: então também abriu a boca para revelar-nos nossos destinos futuros, Por vontade de Apolo, Cassandra jamais foi acreditada pelos troianos. Ao final da guerra de Tróia, derrotados, Cassandra foi levada por Agamenon para Argos. Ali, Clitemnestra, a rainha-esposa de Agamenon, conspirava com Egisto para matar os dois. Agamenon entrou em seu palácio enquanto Cassandra permanecia fora, em transe profético, gritando que sentia cheiro de sangue e que a maldição de Tietes pesava nos salões. Agamenon foi morto com o duplo machado por Egisto, e, em seguida, correndo, Clitemnestra saiu, e, com a mesma arma, matou Cassandra.

A mitologia é uma das linguagens que podem evocar as respostas que a essência de uma mulher anseia, movendo-nos a transformações e nos conduzindo na direção de realizações concretas que se revelam em autoconhecimento, auto-estima e amor próprio. Revestir nosso templo-corpo do sagrado que emana interiormente revela na face o brilho e a força da deusa que habita em nós. Não precisamos de verdades não examinadas, e sim de um mito vivo, de uma estrutura de valor que oriente as energias da alma de forma condizente com a nossa natureza. Cassandra, em seus arrebatamentos que enfatizam-se em gestos, enunciava um sentido definido para os acontecimentos que lhe eram contemporâneos, acontecimentos sombrios, mas ninguém lhe dava crédito. O pai, Príamo, encarcerou-a, e, embora se mantivesse informado sobre os vaticínios, nunca agia em consonância com o que ouvia. O deus Apolo, a quem ela negou o corpo, retirou-lhe a credibilidade, o dom da persuasão. Cassandra foi aprisionada pelo pai numa torre, para evitar escândalo pelo conteúdo de suas visões. As visões que a dominavam não tinham mais qualquer relação com as profecias rituais dos oráculos; ela via o futuro porque possuía a coragem de ver a verdadeira situação do presente.

Cientistas e historiadores têm tentado explicar a caça às bruxas através de vários fatores, e uma das teorias mais contundentes na Idade Média era de que "as mulheres histéricas eram as bruxas, videntes loucas". Por trás dessas formulações há uma preconceituosa e indevida aplicação de um conceito do século 19 aos séculos precedentes, onde a loucura era encarada, inquestionavelmente, como enviada pelos deuses ou por um deus, e o louco furioso vinculado ao possuído.

O mundo feminino aparece refletido no mito de Cassandra, inspirada por Apolo, emitindo vatícinios possuída por esse deus, que ocasionava agitação da mente e inspiração divina. Esse sagrado e divino dom aparece como o extraordinário, face a uma consciência alterada, alargada, onde o indivíduo vê, ouve e vivencia aquilo que para outros não existe, entrando em contato direto com seu Eu Superior, comunicando-se com os deuses e os espíritos.

Uma antiga denominação para um estado da alma excepcional é entheos – o deus dentro de si. Um deus arrebatando o ser humano, transportando-o e mantendo-o em estado possesso durante o fenômeno da mania, devaneio, loucura. A histeria, tendo como sintoma principal a falta de controle sobre atos e emoções, o exagero do efeito de impressões sensoriais, pode ser facilmente associada às manifestações do divino no ser humano. A visão profética com acesso de loucura, possessão, era considerada defeito feminino, pois os homens eram razão e ciência. Cassandra possuía todas as características desse entusiasmo delirante profético, como das bacantes de Eurípedes. Era uma bacante em delírio... O dom profético foi definido por Platão como "a primeira das loucuras divinas". A diferença entre esta e a loucura humana é que a última é produzida pela doença. A mania profética engloba, segundo Platão, o delirante e o divinatório, levando à conclusão de que o "delírio é uma coisa mais bela do que o bom senso". A profecia não se opõe à verdade ou à razão, mas contém um saber que, lançando uma luz na escuridão, desfaz as dúvidas. Um saber que, portanto, implica o conhecimento acerca do futuro do mundo e dos homens: "Da desrazão à razão, há passagem e vaivéns, não exclusão".

Cassandra não foi possuída pelo deus, é justamente isso que ela recusou; não cedeu seu corpo e a autonomia de suas palavras e atos: ela própria profetizava. Não precisava negociar com o deus um dom que já possuía. Apolo venceu a Serpente, aprisionou-a no subterrâneo, e se apossou de Delfos (Ventre da criação), antigo oráculo de Géia. As pitonisas tornaram-se suas sacerdotisas, mas o que diziam era interpretado pelos sacerdotes. Os sacerdotes de Apolo dirigiam suas energias para a conquista dos oráculos, porque eles eram o principal meio para controlar a ação e a opinião pública, e usaram o oráculo par a criar novas leis.

O mais importante ato legislativo de Apolo aparece na tragédia clássica de Ésquilo, Eumenides (II.658-63). Apolo absolve Orestes do crime de matricídio, pelo qual estava sendo perseguido pelas Fúrias, e declara: "Não é a mãe a geratriz daquilo que se diz por ela gerado, mas é somente a nutriz do feto nela recém-semeado. Genitor é aquele que ejeta sêmen... Pode-se ser um pai mesmo sem mãe". Em outras versões, quem dá o voto final que absolve Orestes é Athena, o conhecido Voto de Minerva, pois Athena, nascida da Cabeça de Zeus, não tinha mãe. O decreto faz desaparecer não só a antiga matrilineagem, mas também qualquer possibilidade do feminino criativo. O decreto de descrédito que Apolo concedeu a Cassandra faz parte desse mesmo quadro.

Na raiz da cultura ocidental, de inspiração grega, vemos, portanto, o encarceramento e o descrédito da palavra da mulher, tanto pelo pai e por um deus. Cassandra, que não cedeu seu poder, acabou como despojo da guerra entre os homens, uma escrava. Mas como ainda conservava seu poder, proferiu as palavras, criou o desfecho de sua história, um triunfo de auto-afirmação, pois seu nome permaneceu na legenda épica da memória cultural, individualizado, como uma princesa troiana que previa corretamente os acontecimentos, mas que não era acreditada. O tempo provou o seu valor e o seu dom.

Por outra das vertentes formativas de nossa cultura, como a judaica, vem idéia semelhante, miticamente descrita pela história de Lilith, a primeira mulher de Adão. Lilith foi castigada e banida por ter afirmado sua sexualidade, por ter ousado criar. A mensagem que Lilith encarna é que se os papéis que a sociedade cultua, estereótipos de uma vida de submissão feminina, de pureza contemplativa, de uma vida de silêncio, sem pena nem história, forem experienciados sofrerão a marginalização da sociedade. Uma vida de rebelião para uma mulher de ação significativa é uma vida que precisa ser silenciada, uma vida cuja pena monstruosa conta uma história terrível.

Os mitos atestam em suas matrizes a longa tradição misógina que permeia a cultura ocidental, apesar de todas as suas transformações sofridas desde a antigüidade clássica até a modernidade. A natureza as fez feiticeiras. É o gênio próprio da mulher e de seu temperamento. A mulher nasce Fada. Pelo retorno regular da exaltação, ela é Sibila. Pelo amor, é mágica. Por sua fineza, sua malícia, ela é feiticeira e decide o destino (ou pelo menos o minimiza), e engana os males. "A Sibila prediz o destino. A feiticeira o realiza. (...) Ela evoca, conjura, e faz o destino. Ela não é a antiga Cassandra, que via, deplorava, mas esperava, impotente, pelo Futuro."1

A verdade é muitas vezes vaga quando a procuramos diretamente; mas ela sempre se revela de modo implacável em nossas vidas, em nossos sonhos e nas histórias que contamos uns aos outros. Ao revelar o que vemos e ouvimos devemos encontrar tanto a coragem de sermos autênticos com nós e com outros quanto um modo de conviver com o efeito que nossas atitudes e palavras provocarão nos outros, mesmo quando não há intenção oculta ou culpa velada. No delírio de Cassandra, muitas de nós, mulheres, nos perdemos em entusiasmos delirantes e paixões arrebatadoras. Essa atividade sucessiva que é proferir e falar sem jamais ser escutada pode levar a um estado de impaciência e inquietação, que fatalmente dirige-se à loucura histérica ou à insegurança terrível de não saber quem somos.

A questão não é a falta do mito na vida, porém o reconhecimento de qual mito está se vivenciando, pois somos sempre guiados por imagens, consciente ou inconscientemente. O caminho da individuação e do conhecimento de si é a alternativa viável, a imposição evolutiva de cada um de nós, de nos tornarmos a nós mesmos o mais completamente que formos capazes, dentro dos limites que nos são impostos pela nossa sina. Separar quem somos daquilo que adquirimos.

Compreendendo o mito que estamos vivendo somos capazes de perceber a realidade que nos cerca, o que é realmente verdadeiro naquele momento e qual a fantasia associada ao mito? Como poderíamos ser capazes de esquecer os antigos mitos que estão no início de todos os povos? Os mitos a respeito de dragões que no último momento se transformam em princesas. Talvez todos os dragões da nossa vida sejam princesas que estão esperando para nos ver uma vez belos e bravos. Talvez tudo que existe de terrível seja, bem no fundo, algo indefeso que precisa da nossa ajuda. Os dragões representam tudo o que tememos e que ameaça nos engolir; partes negligenciadas de nós mesmos que podem demonstrar imenso valor. Quando levados a sério, e até mesmo amados por nós, esses dragões responderão, fornecendo enorme energia e grande significado para a jornada.

No filme Matrix, o personagem agente Smith, em uma cena, diz que eles criaram um mundo perfeito, sem dor, sem sofrimento, sem pobreza, só beleza, mas os seres humanos não conseguiram sobreviver àquilo; não procriavam mais, não se desenvolviam ali. Foi necessário reinventar outro e trazer o sofrimento novamente, porque parece ser essencial à alma do humano. No mito e livros sobre Cassandra, a personagem também ousa falar a mesma coisa: "(...) a única possibilidade de salvação para as mulheres era acordar de sua inconsciência e começar a vivenciar frustrações, descontentamentos, sofrer angústias etc. Este seria o preço de poder protagonizar a ação. Sem a possibilidade de viver todos esses sentimentos, o único fim possível seria a loucura e deterioração moral. Não é a luta pelo dinheiro, nem mesmo o trabalho, mas a restauração da dor. Devolvam-nos nosso sofrimento. Nós necessitamos ter em nossos corações sofrimento em vez de indiferença. Para o nada vem o nada, mas para o sofrimento poderá vir a cura. É muito melhor a dor do que a paralisia. Milhares podem lutar e acabar por se afogarem num barril. Uma descobre um novo mundo. Mas é melhor, dez vezes melhor, morrer na onda procurando este novo mundo do que ficar parada, à margem...." 2

Esse é o insight original: Cassandra exige que seja devolvida a parte feminina do sofrimento. Sofrimento entendido não no sentido pessoal, mas a partir do contato com as realidades do mundo, como a miséria, o crime, a pobreza. Ao final do livro, Cassandra-personagem acaba morrendo aos 30 anos, esquecida, acabada, paralisada. Enquanto pôde, lutou para não deixar que seu intelecto e sua energia fossem destruídos por trabalhos insignificantes. Também lutou por uma instituição onde poderia ensinar às mulheres algum ofício. Mas a sociedade a encara como louca, e ela morre completamente desconsiderada. Tal e qual o mito. Victor Hugo já disse que "nós vemos sempre apenas um lado das coisas. O outro mergulha na noite de um mistério amedrontador".

Mulheres-Cassandras, condenadas a um vaticínio sangrento, cientes de seu fim, enfrentam jornadas como cativeiras, e terminam aniquiladas por mulheres, ciumentas da entrega e plenitude que vivem por e per si. Toda mulher quer fugir de sua máscara-cassandra por desejar o domínio e a persuasão sobre as coisas e seres. Quem tem medo de alguém que fala e grita, em êxtase, delirantemente vivendo cada cena que vê no infinito? Tênue é a linha que separa a loucura de seus vatícinios, pois na solidão do seu ser vive encerrada em sua torre de marfim. Confinada ao seu mundo, molda-se silenciosamente, sem ajuda, sem amigos. Ninguém compreende que não deseja aquele final, apenas vislumbra-o. Por que não tentam evitá-lo? Ora, Cassandras, todos preferem não ouvir aquilo que não querem que aconteça. Aqueles que saem em busca de vaticínios esperam por sucesso, dinheiro e amor; jamais por morte e terror. Poucos aguentam verdades, sem véus e sem máscaras... Triste fim de Cassandra-mulher, destinada a ser e ver sem poder agir ou mudar, em razão do seu descrédito. A infelicidade que jaz em seus olhos é reflexo do mundo solitário em que vive, que não lhe esconde segredos.

Ou se vive plenamente essa face, ou guardamo-la na cela, fechada a sete chaves, na escuridão de nosso ser. Abrir a porta que descerra Cassandra é ter contato com uma parte de si desacreditada. É delirar, insana, extasiada, angustiada e incompreendida. Muitas vezes é caminhar rumo à destruição. Tudo o que pedem essas mulheres-cassandras é que as ouçam, sem julgamentos ou críticas. Entendam e respeitem seu mundo, suas tempestades e desvarios. Mas, tal e qual seu pai no mito, quando desandam a falar e se expor, são excluídas do convívio, e se continuam à força a prever algo, tecer considerações ou opinar discordantemente, loucas desvairadas se tornam, motivo de chacota e risos. Ah, Cassandra, que asneiras você tanto profere!

Ninguém percebe sua dor ao ver o amor que cativou-a caminhando em direção à morte. Assiste a tudo sem poder agir, desacreditada como sempre. Infelizmente já nasceu dividida, e, pelo menos no mito, seu final não é encontro, mas aniquilamento sanguinolento. Morta pelo feminino, que execra sua feminilidade, tem ódio pelo amor que conquistou e pela força que detém, pois, mesmo ante a visões tresloucadas, possuída pelos deuses, enlouquecida de pavor, continua de pé, firme como uma guerreira, sem cair... Espera pelo final sem fugir, não há temor, apenas tristeza. Lágrimas devem correr por seus olhos quando se volta e só recebe descrédito total. Não empreende fuga, apenas sente e vivencia o momento presente, a dor de ver aquilo que ninguém enxerga; dor que paralisa ante olhares que a julgam louca e desajustada.

Ao optar por caminhar na jornada reconhecendo seu dom de profecia, Mulheres-Cassandras podem permanecer mudas, caladas, encerradas na prisão recém-construída, vindo a se tornar aos poucos o que alguns chamam de mulheres histéricas. Ou podem escolher proferirem suas visões, cientes da falta de atenção e persuasão que vão encontrar, mas totalmente livres para falar ao vento o que colhe seu coração...

"Podia dizer ao mundo: tomaste o meu dom! A glória dominou-a por um momento. Mas que tinha ela dado? Uma nuvem que no horizonte se dissolvia nas outras nuvens. Era na dádiva que residia o triunfo. E o triunfo desvanecia-se. O seu dom não significava nada. Ah, se eles tivessem compreendido o que ela queria dizer... " 3

(1) A Feiticeira, Jules Michelet, Nova Fronteira, 1992.

(2) Cassandra, Christa Wolf, Estação Liberdade, 1999.

(3) Fala de Cassandra.