sábado, fevereiro 14, 2004


DESTINO

Há um homem que caminha pelo jardim com um livro.
O homem é cego
O jardim é um labirinto de caminhos
que se dividem e se ramificam e se combinam.
Há estátuas no jardim. Estátuas enormes.
Se elas se movem, como dizem alguns,
é devagar demais para ser percebido.
O livro é pesado. Você não conseguiria levantá-lo...
Ele está acorrentado ao livro, ou o livro a ele.
O livro de muitas páginas. Não pode ser roubado.
O homem não pode se desfazer dele.
O livro contém sua vida. Cada detalhe de sua vida.
Tudo o que lhe aconteceu. Tudo o que acontecerá um dia.
As coisas que você esqueceu.
As coisas que você não acredita.
Contém tudo que já aconteceu, ou acontecerá,
para todas as pessoas que você já conheceu.
Qualquer um que já tenha encontrado...
O significado das manchas de cada leopardo está escrito aqui,
assim como a verdade das formas das nuvens.

"Noites sem fim'

quinta-feira, fevereiro 12, 2004


AO ACASO

Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios.

"Alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível.

Então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma, pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém."

in "Para não esquecer", C.L.

Sua ausência

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Haia

Estou cheio de recordações e tudo o que já é passado tem um toque de melancolia dolorida. Que faço de tantas lembranças - senão morrer?

Em cada palavra pulsa um coração. Escrever é tal procura de íntima veracidade de vida. Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra. Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho enfim em mim até o nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é obscura. Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim.

Clarice Lispector - Um sopro de vida

Era uma vez 'eu'

Todo momento de achar é um perder-se a si próprio. Talvez me tenha acontecido uma compreensão tão total quanto uma ignorância,e dela eu venha a sair intocada e inocente como antes. (...) Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direação ao que não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. Não eram as antevisões da visão: Já tinham o tamanho dos meus cuidados. Minhas previsões me fechavam o mundo.

(...)Estou tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se imaginar que alguém me está dando a mão. Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria. Muitas vezes antes de adormecer - nessa pequena luta por não perder a consciência e entrar no mundo maior - muitas vezes, antes de ter a coragem de ir para a grandeza do sono, finjo que alguém está me dando a mão e então vou, vou para a enorme ausência de forma que é o sono.

E quando mesmo assim não tenho coragem, então eu sonho. Ir para o sono se parece tanto com o modo como agora tenho de ir para a minha liberdade. Entregar-me ao que não entendo será pôr-me à beira do nada. Será ir apenas indo,e como uma cega perdida num campo. Essa coisa sobrenatural que é viver.O viver que eu havia domesticado para torná-lo familiar.

(...) A verdade não faz sentido,a grandeza do mundo me encolhe. Aquilo que provavelmente pedi e finalmente tive, veio no entanto me deixar carente como uma criança que anda sozinha pela terra.

C. Lispector

A paixão

(...) Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive:apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.

Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta minha nova covardia - a covardia é o que mais de novo já aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la - na minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir. É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo.

Até agora achar-me era já ter uma idéia de pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu me encarnava,e nem mesmo sentia o grande esforço de construção que era viver. A idéia que eu fazia de pessoa vinha de minha terceira perna, daquela que me plantava no chão. Mas, e agora? Estarei mais livre?

Não. Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de novo penso porque tenho
por objetivo achar- e que por segurança chamarei de achar o momento em que encontrar um meio de saída. Por que não tenho coragem de apenas achar um meio de entrada? Oh,sei que entrei,sim. Mas assustei-me porque não sei para onde dá essa entrada. E nunca antes eu me havia deixado levar, a menos que soubesse para o quê. Ontem, no entanto,perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero simplesmente ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorganização. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação a ser?

E no entanto não há outro caminho.Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? Como é que explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra - como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que ver é uma tal desorganização? E uma desilusão. Mas desilusão de quê? Se,sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido. Ou que eu era antes, não me era bom.

Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor:a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo não faça sentido. Mas por que não me deixo guiar pelo o que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade.

(...)Foi como adulto então que tive medo e criei a terceira perna? Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder? Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que for achando. As duas pernas que andam,sem mais a terceira que prende. E eu quero ser presa. Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas enquanto eu estava presa, estava contente? Ou havia, e havia aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira? Ou havia, e havia, aquela coisa latejando,a que eu estava tão habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa. É? Também, também.

Clarice Lispector

VERDADE: Nua e Crua

(...) Burrice pega mesmo.

"De tanto eu mentir para ser da mesma opinião dos outros, porque não adianta contrariar, fiquei lesa. Confundi as falsas moedas com moedas verdadeiras.. Na verdade o que eles são mesmo é: best-sellers...As opiniões deles são best-sellers, as idéias deles são best-sellers. Acrescente-se a isso a falsa modéstia dela, uma vontade de ser mártir, e uma vontade best-seller de ser vítima e de ter angústias. Acresce-se a isso que ela me procura tanto que já não agüento. E de manhã, de tarde, de noite. Uma coisa que se diga a ela, fere a susceptibilidade dela, e ela passa a noite chorando! Ela é sofisticada. Fala-se de artistas bonitos ou atraentes de cinema, ela diz com ar de Greta Garbo: nunca reparei se um artista é ou não bonito, só presto atenção no trabalho. Muito chato, meu Deus... (Essa expressão best-seller ligada às pessoas em geral é invenção de Ceschiatti, que vive descobrindo expressões perfeitas em relação às coisas)".

Clarice Lispector, em uma cart, de Berna, para as irmãs, sobre a vida no meio diplomático e os diplomatas ou suas esposas.

Eu

Nasci para amar os outros,
nasci para escrever e
nasci para criar meus filhos.
O "amar os outros" é tão vasto
que inclui até perdão para mim mesma,
com o que sobra.
Amar os outros é a única salvação individual que conheço:
ninguém estará perdido se der amor e
às vezes receber amor em troca.

Clarice Lispector