quinta-feira, fevereiro 12, 2004


A paixão

(...) Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive:apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.

Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta minha nova covardia - a covardia é o que mais de novo já aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la - na minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir. É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo.

Até agora achar-me era já ter uma idéia de pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu me encarnava,e nem mesmo sentia o grande esforço de construção que era viver. A idéia que eu fazia de pessoa vinha de minha terceira perna, daquela que me plantava no chão. Mas, e agora? Estarei mais livre?

Não. Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de novo penso porque tenho
por objetivo achar- e que por segurança chamarei de achar o momento em que encontrar um meio de saída. Por que não tenho coragem de apenas achar um meio de entrada? Oh,sei que entrei,sim. Mas assustei-me porque não sei para onde dá essa entrada. E nunca antes eu me havia deixado levar, a menos que soubesse para o quê. Ontem, no entanto,perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero simplesmente ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorganização. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação a ser?

E no entanto não há outro caminho.Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? Como é que explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra - como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que ver é uma tal desorganização? E uma desilusão. Mas desilusão de quê? Se,sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido. Ou que eu era antes, não me era bom.

Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor:a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo não faça sentido. Mas por que não me deixo guiar pelo o que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade.

(...)Foi como adulto então que tive medo e criei a terceira perna? Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder? Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que for achando. As duas pernas que andam,sem mais a terceira que prende. E eu quero ser presa. Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas enquanto eu estava presa, estava contente? Ou havia, e havia aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira? Ou havia, e havia, aquela coisa latejando,a que eu estava tão habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa. É? Também, também.

Clarice Lispector