sexta-feira, julho 17, 2009


Um lugar para todos.

"O que aprendi é simples: a vida anda mais depressa que nós. Durante todo o tempo que desperdiçamos contando piadas, parados nas esquinas, indo a festas, dormindo oito horas por dia, a vida seguia em frente, como um rio que não conseguimos acompanhar. Esse rio não espera enquanto construímos uma ponte para cruzá-lo; ele continua fazendo o que tem que fazer. É assim que são os rios: eles correm. Por isso é importante não perder tempo, não desperdiçar um único dia nem um minuto que seja de um dia. É importante fazer bom uso de todo o tempo que nos é dado. Eu acreditava nisso na juventude e continuo acreditando hoje.

— Mas aí temos um paradoxo — prosseguiu. — Se deixarmos de fazer tudo que pareça perda de tempo, que pareça desperdício, a própria vida perde o sentido. Contar piadas, caminhar na praia, se apaixonar... De tudo isso um homem se lembra no fim da vida. Se teve um número suficiente dessas experiências, ele morre rico. Do contrário, morre sem nada, ainda que sua conta bancária esteja recheada. E isso, Mehernosh, isso foi uma coisa que demorei um bocado para aprender. De certo modo, é uma lição que ainda estou aprendendo.

O que quero dizer é muito simples: seja feliz. Em vários lugares, isso é fácil. Nos Estados Unidos, me disseram, essa frase está escrita até na Constituição. Mas na índia, não. Não na nossa comunidade parse. Aqui sempre nos dizem para não rirmos alto demais, não sonharmos grande demais, não voarmos para longe demais. Desde criança ouvimos que o orgulho vem antes do tombo. Mas, Mehernosh, um homem que mergulha para pegar peixe pega peixes. Quem tem por meta as estrelas alcança uma estrela. Por isso, quem tem peixes só pode partilhar peixes, não estrelas. Ninguém pode partilhar o que não tem, entende?

A vida toda nos disseram que Deus não deseja que sejamos orgulhosos, que Deus corta as asas de quem voa alto demais. Mas acontece que ninguém conhece a fita métrica de Deus. Muita gente da nossa comunidade vai tentar puxar vocês para baixo, vai dizer que vocês não têm direito à própria satisfação, vai lhes mostrar toda a miséria do mundo para provar o próprio argumento. Mas ouçam com atenção: vocês não só têm o direito, mas também a obrigação de serem felizes.

— Sabe o que mais? As feridas cicatrizam, e eu espero que cicatrizem fatta-faat. É verdade: as feridas cicatrizam, e as cicatrizes somem. Mas as lembranças vivem para sempre. E esta noite nossos corações estão cheios de lembranças felizes, apesar do que aconteceu. "Sempre tentando fazer os outros se sentirem melhor. Talvez seja preciso um coração partido para evitar que outros se partam."

T. Umrigar

terça-feira, julho 14, 2009


Reticências.

(...).

- Você não entenderia.

Ele abaixou a cabeça, e virou-se para a janela, esperando por uma resposta. Uma atitude. Queria que ela percebesse que não conseguia pedir. Não conseguia dizer. Apenas deixar que ela consertasse tudo...

- O que eu não entenderia? Como se você soubesse... Você já amou alguém? Já amou tanto alguém que só o pensamento de perdê-la lhe fez sentir nós no estômago?

Ouvindo aquela frase ele parou, se virou e olhou para ela, encostada na parede da pequena sala de jantar. Pensou nela, no seu sorriso, no seu humor seco e na curva do seu pescoço, onde encostava seu queixo para dormir. Queria tanto poder traze-la para perto de si...

- Eu não tenho certeza, Lallie. Mas tenho certeza de uma coisa. Se alguma vez eu lhe magoei, eu não quis magoá-la. Tenho absoluta certeza de que não magoaria você intencionalmente. Eu só respondo aquilo que você me fere. Eu posso não saber muito sobre amor, mas isso eu sei. Sinto muito, mas eu não sei amar alguém... Eu nunca me permiti ser amado desse jeito...

- Não sinta. Às vezes você tem que experimentar as coisas amargas para conseguir apreciar as coisas doces. Mas você não consegue apreciar o açúcar até que todo o gosto amargo acabe. - Ela passou de leve o polegar sobre a parte de dentro do pulso dele e os pêlos do seu braço se arrepiaram. - O que seus pais fizeram não teve nada a ver com você, que era uma criança. Se ela era infeliz porque seu pai tinha ido embora, tinha outras maneiras muito mais nobres de lidar com isso. Se sua mãe foi infeliz porque seu pai tinha casos, havia outras maneiras de ela lidar com isso. O que essas pessoas fizeram não foi culpa sua. Não sei quanto a você, mas eu não pretendo pagar pelos erros dos outros o resto da minha vida.

Sentindo a boca seca, umedeceu os lábios. E continuou a falar:

- Eu perdôo você. Suas mentiras. Sua promessa não cumprida, suas explosões de raiva... Não porque a Bíblia me manda perdoar. Acho que não sou tão boa cristã, porque simplesmente não sou magnânima. Eu o perdôo porque, tentando perdoá-lo, fico livre de toda a raiva e de toda a amargura do passado, e é isso que eu quero para você também. Pensei sobre o que fiz, e sinto muito tê-lo magoado, Mick. Mas não me arrependo de tê-lo conhecido e de ter me apaixonado por você. Amar você destruiu meu coração e me causou muita dor, mas me fez uma pessoa melhor. Eu te amo, Mick, e espero que algum dia você encontre alguém que possa amar. Você merece mais na vida do que várias mulheres em série com quem você não se importa de verdade, e que também não se importam tanto com você. Amar você me ensinou isso. Me ensinou como é sentir amor por um homem. E espero que algum dia eu possa encontrar alguém que vai me amar do jeito que você não pôde. Por que eu mereço mais que uma série de homens que não se importam comigo. - Depois de dizer isso, seu olhar se voltou para os olhos dele: - Eu vim aqui esta noite para lhe dar o livro e para dizer adeus.

- Você está indo embora? - Ele ficou admirado pela maneira como se sentiu ao ouvir aquele adeus.

- É. Eu preciso realizar meu sonho, Mick. Uma casa na árvore, assoalho de madeira, cama king-size e alguém para eu abraçar a noite inteira. Eu quero uma família, não uma coletânea de parentes em algum álbum... Quero ser feliz, e jamais pensei em sobreviver com pouco. Com sobras. Não posso fazer isso, com o que a vida me presenteou. Eu quero um filho, e sonhei tanto com seu rostinho... Sabe, o pior da perda é você encarar o monte de sonhos transformados em cacos, aos seus pés.

Foi saindo da sala, em direção a porta, não se virando porque já estava chorando, louca para fugir dali, esparramar-se em algum cantinho, e poder soluçar a vontade. As lágrimas desciam pelo rosto, pingavam do queixo, e continuavam a rolar... Chorava pelo sonho que não soubera tornar realidade... Por Ele, que lhe havia entendido muito mais profundamente do que achou que era capaz, e talvez até mais do que ela mesma merecesse. E agora, como é que se dava o próximo passo, sentindo-se incapaz até de respirar?

"Veja só," pensava, parada no saguão do prédio de Mick qual um fantasma, qual um sentimento de culpa, qual um machucado que já teria formado a casquinha, mas de repente volta a sangrar. "Veja só o que restou de mim. Fui dar um passeio e me virei pelo avesso. Aí, me perdi, mas agora estou tentando me achar". Sentia-se ridícula, de verdade. Sentia-se um espetáculo à parte, uma história para chorar, uma aberração. "Deveriam tirar uma foto minha, colocar o meu pôster na parede de todas as escolas, nas livrarias ao lado dos romancinhos do tipo Sabrina e dos livros de auto-ajuda que falam de encontrar sua alma gêmea, alguém com quem compartilhar a vida, um verdadeiro amor. Eu poderia servir de aviso, e evitar que as meninas seguissem o meu destino, acreditar em sonhos, em amor...". - Eu quero uma casa com assoalho de tábua corrida – pensou alto - e não quero que ninguém mais entre nela.

Naquela tarde, caminhou durante horas a fio, até que as ruas, as calçadas, os prédios se tornaram um borrão acinzentado. Lembrava-se de ter comprado uma limonada para tomar e, depois de algumas horas, parado para fazer xixi num terminal de ônibus, de que, em algum momento, o tornozelo que estivera engessado começou a latejar. Ignorou o fato. A dor maior era a de dentro. Continuou caminhando. Caminhando para o sul, depois para o leste, atravessando bairros estranhos, passando por trilhos de bonde, bocas de fumo incendiadas, fábricas abandonadas, pelas curvas lentas e salobras do Centro. De alguma forma, achou que iria percorrer o caminho todo até Araçatuba.

Quando chegou ao edifício, várias horas depois, ainda estava rindo, lembrando da cigana na Maria Paula, a maior chuva desabando e ela lhe pedindo para ler sua mão. Deveria ter prestado mais atenção. Mas qual eram as palavras? Era ela que sempre ficaria com a dor, e mesmo assim, seria ela que teria que curar feridas, abrindo mão de ser cuidada. Parecia que seu poço não tinha fim, não havia nenhuma cama elástica como nos desenhos e livros de auto-ajuda, apenas uma grande e velha pá, dizendo “Vamos, ainda tem mais fundo pra você cavar”.

"Ah, Se minha avó me visse agora, coitada... tantas esperanças depositadas... “Que rostinho lindo!”, dizia, segurando-me o queixo com a mão em concha, e em seguida balançava a cabeça sem sequer se dar ao trabalho de dizer o resto. Pois, eis-me aqui: trinta e seis anos, com os quarenta já despontando no horizonte. Bêbada. Gorda. Só. Desamada. E, pior de tudo, um clichê, espécie de Ally McBeal e Bridget Jones juntas."

A melhor opção, resolveu, seria se esconder no armário e se fingir de morta, quando chegasse ao apartamento. Apertar o travesseiro com força contra o rosto, estar na cama, enfiada embaixo da colcha escocesa estampada de marrom e vermelho, lendo depois de já ter passado a hora de dormir, sentindo a presença silenciosa dele perto, percebendo o peso do orgulho e do amor dele como se fossem coisas tangíveis, qual água morna. Queria que ele colocasse a mão na minha testa como costumava fazer, queria perceber o sorriso na sua voz quando ele dissesse: “Ainda está lendo?”, Como ela queria isso!

Levou um susto quando sentiu o peso da mão dele em seu ombro, quando estava abrindo a porta do seu apartamento. Ele tinha esquecido de lhe devolver a chave, pensou. Mas não foi isso o que seus ouvidos captaram.

Não vou deixar você ir embora — falou ele.

Ficou ali, de costas, pensando que agora poderia deixá-lo perceber o que era “sentir muito”. Uma pancada com a porta na sua cara, talvez lhe fizesse sentir toda a dor que tinha acalentado durante aquele tempo. E o que iria adiantar? Nada. Ele era mais teimoso que uma mula, e nunca mais o teria ali. Sem ele, não dava pra ficar... E se voltou devagar, meio sorriso, pra disfarçar... A vida era muito bonita para devolver picuinhas. Depois, ela sabia como ninguém cuidar de alguém ferido.

E não precisa — disse-lhe, enfiando o rosto em seu pescoço, sentindo seu cheiro, o da fumaça adocicada, o do creme de barbear e o do xampu, glorificada por estar entre os seus braços, pensando que era exatamente isso que ela queria, o que sempre quis: o amor de um homem que era maravilhoso e meigo e que, acima de tudo, lhe compreendia. — Nunca mais vai precisar.

- Eu não sei o que é amor, Lallie. Mas, pode ser isso o que estou sentindo, e vou te confessar uma coisa: não quero descobrir o nome desse sentimento. Pra que nomear? Eu sei o que é a verdadeira tristeza. Posso explorá-la todas as noites, como uma criança que perde o dente e não consegue parar de passar a língua pelo buraco que ficou na gengiva amolecida de onde saiu o dente. Sou assim, com a sua falta. A escolha é sua, imagino estar lhe dizendo com o meu silêncio. É a sua vez, o jogo é seu, a cartada é sua. Porque eu consigo silenciar essa parte de mim que fica imaginando coisas, que quer saber como você fez a escolha: não pergunto, nem telefono. Não envio um cheque, uma carta, nem sequer um cartão. Eu acordo, faço ginástica, vou para o escritório enfrento a rotina, tentando manter a pontinha da língua longe daquele buraco no meu sorriso. Mas no fundo eu sei que só conseguirei adiar isso até um certo ponto, que nem mesmo a minha covardia poderá evitar o inevitável. Em algum lugar de mim, você está trancada, e eu não quero ter certeza do que sinto quando você já não estiver mais por perto. Eu enlouqueceria se visse você com outro, Lallie...

Eu aprendi muito este ano — começou. Respirou fundo, trêmula, e disse a si mesma: Não chore. — Aprendi que nem sempre as coisas acontecem do jeito que planejamos, ou do jeito que achamos que devem ser. E aprendi que há coisas que dão errado e nem sempre podem ser consertadas ou voltar ao que eram antes. Aprendi que algumas coisas quebradas permanecem quebradas, e aprendi que se pode passar por maus momentos e continuar procurando outros melhores, contanto que tenhamos gente que nos ame — fez uma pausa e passou uma das mãos pelos olhos. — Você é a minha alegria. As coisas acontecem, sabe? É uma das grandes lições da terapia. As coisas acontecem e não há como fazer com que "desaconteçam". Você não pode passá-las a limpo, não pode voltar o relógio, e a única coisa que dá para mudar, a única Coisa com que vale a pena se preocupar é a maneira como você se deixa afetar por elas. Não dá pra continuar a vida, sem você ao meu lado.

Amando alguém avantajado.

Amando uma Mulher Avantajada
por Candace Shapiro

Aos cinco anos, aprendi a ler. Os livros eram um milagre para mim - páginas brancas e tinta preta, cada qual com seus mundos novos e amigos diferentes. Até hoje gosto da sensação de abrir um livro pela primeira vez e perceber a capa estalando, querendo antever os lugares para onde irei e as pessoas que conhecerei ali dentro. Aos oito anos, aprendi a andar de bicicleta. E isso também abriu os meus olhos para um mundo novo que eu podia explorar por conta própria - o riacho que murmurejava através de um terreno baldio dois quarteirões adiante, a loja que vendia sorvete feito em casa na casquinha por apenas um dólar, o quintal que fazia fronteira com um campo de golfe e tinha um cheiro picante, como o de cidra, das maçãs que caíam no chão durante o outono. Aos doze anos, aprendi que eu era gorda. Meu pai me disse isso, apontando para a parte interna das minhas coxas e a parte de baixo dos meus braços com o cabo de sua raquete de tênis. Estávamos jogando, lembro-me bem, e eu estava vermelha e Suada, exultante com a alegria do movimento. Você vai ter de Prestar atenção nisso aí, ele me disse, cutucando-me com o cabo de forma que as gorduras balançaram. Os homens não gostam de mulheres gordas.

Embora isso não se revelasse mais tarde uma verdade absoluta - haveria homens que me amariam, e haveria gente que me respeitaria - levei suas palavras para a minha vida adulta qual uma profecia, enxergando o mundo através do prisma do meu corpo, e da previsão do meu pai. Aprendi a fazer dietas - e, naturalmente, a não segui-las direito. Aprendi a me sentir infeliz e envergonhada, a me afastar de Espelhos e dos olhares dos homens, a me tensionar para os insultos que sabia virem sempre: a líder do grupo de escoteiros que me oferecia cenouras, enquanto as outras meninas ganhavam biscoitos e leite; a bem-intencionada professora que me perguntava se eu já experimentara fazer uma aeróbica. Aprendi uma dúzia de truques para me tornar invisível- como manter uma toalha enrolada na cintura na praia (mas nunca entrar na água), como escapulir para a última fileira em qualquer grupo que se prepara para tirar uma foto (e nunca sorrir), como me vestir em tons de cinza, preto e marrom, como evitar ver o meu próprio reflexo nas janelas e espelhos, como pensar em mim exclusivamente como um corpo - mais do que isso, como um corpo que deixava a desejar, que se tornara algo horrendo, desleixado e repugnante. Havia mil palavras que poderiam me descrever – esperta, engraçada, gentil, generosa. Mas a que eu escolhia - a palavra que eu acreditava que o mundo escolhia para mim – era gorda.

Aos vinte e dois anos, saí para o mundo numa armadura invisível, na expectativa de ser alvejada de todo jeito, mas determinada a não me deixar atingir. Arranjei um emprego maravilhoso e acabei me apaixonando por um homem que acreditei que iria me amar pelo resto da vida. Mas não. E então – acidentalmente - engravidei. E quando minha filha nasceu quase dois meses antes do previsto, aprendi que há coisas piores do que não gostar das suas coxas ou da sua bunda. Existem coisas mais horripilantes do que experimentar um maiô diante dos espelhos tríplices da lojas de departamentos. Existe o medo de ficar vendo sua filha se debater para conseguir respirar, no meio de um bercinho de vidro onde você não pode nem tocá-la. Existe o horror de imaginar um futuro no qual ela não seja forte ou saudável. E, em última instância, aprendi que existe o conforto. O conforto de chegar até as pessoas que a amam, o conforto ele pedir socorro e o conforto de perceber, afinal, que eu tenho valor, que gostam de mim, que me amam, mesmo que eu jamais consiga usar roupas de tamanho menor que 48, mesmo que a minha história não tenha o final feliz perfeito de Hollywood, no qual eu perco trinta quilos e o Príncipe Encantado resolve que me ama.

A verdade é a seguinte: estou bem do jeito que sou. Sempre estive bem. Jamais serei magra, mas serei feliz. Vou amar a mim mesma, e amar o meu corpo, pelo que ele é capaz de fazer por ele ser forte o suficiente para se erguer, para andar, para subir um morro pedalando uma bicicleta, para abraçar as pessoas que eu amo com toda a plenitude e para nutrir uma nova vida. Vou amar a mim mesma, porque sou fone. Porque não sucumbi – nem vou sucumbir. Vou saborear bem a minha comida e também a minha vida, e se o Príncipe Encantado nunca aparecer - ou, pior ainda, se passar por mim, fizer uma breve análise do meu corpo e disser que o meu rosto é lindinho e depois perguntar: Será que você nunca pensou em tomar Optifast? -, vou fazer as pazes com isso.

E o que é mais importante: vou amar minha filha, seja ela grande Ou pequena. Vou dizer sempre que ela é linda. Vou ensiná-la a Nadar, a ler e a andar de bicicleta. E vou dizer que, usando tamanho 36 ou 50, ela pode ser feliz, forte e ter a certeza de que encontrará amigos, terá êxito e até amor. Vou sussurrar isso no seu ouvido quando ela estiver dormindo, Vou dizer: Nossa vida – a sua vida - será maravilhosa.

Acompanhados.

A gente nasce, e morre só.
Talvez por isso tenhamos tanta necessidade
de vivermos acompanhados.
Rachel de Queiroz

MULHER TAMANHO G.

Amando uma Mulher Avantajada
de Bruce Guberman

"Nunca vou me esquecer do dia em que descobri que minha namorada pesava mais que eu. Ela estava dando um passeio de bicicleta e eu em casa assistindo ao jogo, folheando as revistas em cima da mesinha de centro, quando encontrei seu fichário dos Vigilantes do Peso, uma caderneta do tamanho de meia folha de papel oficio, com anotações do que ela havia comido, quando havia comido, quais eram seus planos para o que iria comer em seguida e se vinha tomando os oito copos de água por dia. Lá estava o nome dela. O número de identificação. E o peso, que eu não cometerei a indelicadeza de revelar aqui. Basta dizer que o número me deixou chocado. Eu sabia que C. era uma garota grande. Sem duvida, maior do que as mulheres que eu via na TV, andando para lá e para cá de biquíni, aquelas magrelinhas que aparecem nas comedias e seriados médicos. Absolutamente maior do que todas as outras mulheres que eu namorei. Ora, essa!, pensei sarcasticamente. Do que as duas?

Eu nunca achei que fosse ficar a fim de uma gordinha. Mas quando conheci C., me apaixonei porque ela era muito espirituosa, tinha uns olhos brilhantes e um riso contagiante. Quanto ao corpo, resolvi que era uma coisa a qual eu poderia aprender a conviver. Os ombros dela eram tão largos quanto os meus, as mãos quase do mesmo tamanho. E dos seios até a barriga, da cintura para baixo, passando pelas coxas, suas curvas eram um deleite, convidativas. Abraçá-la era como chegar a um porto seguro. Como chegar a casa.

Mas sair com ela não era uma sensação tão reconfortante assim. Talvez fosse pela maneira como eu absorvia as expectativas da sociedade, os pressupostos do que os homens devem querer e das características físicas que as mulheres devem ter. Talvez fosse mais pelo jeito dela mesmo. C. era o próprio soldado nas guerras do corpo. Com um metro e setenta e oito, estatura de jogador de futebol americano, e um peso que a classificaria direto para a equipe profissional, C. não tinha como passar despercebida. Mas eu sei que, se fosse possível, se todos os ombros curvados e posturas constrangidas, todos os camisões pretos sem forma e sem graça, se tudo isso pudesse apagá-la do mundo físico, ela teria ido num instante. Ela não sentia prazer algum exatamente nas coisas que eu mais amava, no seu tamanho, na sua amplitude, no seu corpanzil suculento e carnudo. Por mais que eu lhe dissesse que era linda, ela nunca acreditava em mim. Por mais que lhe dissesse que aquilo não importava, eu sei que para ela importava. Eu sentia que a vergonha dela era algo palpável, que caminhava pelas ruas do nosso lado, sentava-se junto conosco no cinema, à espreita de alguém que viesse lhe dizer a palavra mais feia do mundo: gorda. E eu sabia que não era nenhuma paranóia. Estamos todos cansados de ouvir que a gordura é o último preconceito aceitável, que os gordos são o único alvo seguro neste nosso mundo politicamente carreto. Quem quiser saber se isso é verdade que arranje uma namorada gorducha! Vai ver como as pessoas olham para ela, e como olham para você por estar com ela. Quando resolver comprar roupa intima para lhe dar de presente no dia dos namorados, você vai ver que os tamanhos acabam antes de começar a numeração dela. Todo vez que saírem para comer, você vai vê-la sofrendo para escolher entre o que vai querer comer o e que vai se permitir, e entre o que vai se permitir comer e o que vai deixar que a vejam comer em público. E o que vai se deixar dizer.

Lembro-me de quando surgiu a história da Mônica Lewinsky e C., que é jornalista, escreveu uma defesa emocionada da estagiária da Casa Branca que fora traída por Linda Tripp, em Washington, e ainda mais traída pelos amigos de Beverly Hills, que não tardaram em vender as lembranças de ginásio que tinham da Monica para as revista Inside Edition e People. Quando o artigo dela foi publicado, C. recebeu um monte de cartas depreciativas, inclusive a de um sujeito que começava dizendo assim: “Dá para ver pelo seu artigo que você está acima do seu peso e ninguém a ama.” E foi essa carta, com aquelas palavras, que mais a incomodou, mais do que qualquer outra coisa que tenham dito. A ser verdade aquilo de estar acima do seu peso, então a parte em que ele diz que ninguém a ama também deveria ser. Parecia que ser “Lewinskyana” era pior que ser traidora, ou pior do que ser burra. Parecia que ser gorda era algum tipo de crime.

Amar uma mulher avantajada é um ato de coragem em nosso mundo, talvez até um ato de futilidade. Porque, ao amar C., eu sabia que estava amando alguém que não se acreditava digna do amor de ninguém. E agora que acabou, não sei para onde aponta a minha raiva ou mágoa. Para um mundo que a fazia sentir-se daquele jeito com relação ao seu corpo e a ser rejeitada. Para C., por não ser forte o suficiente para superar o que o mundo lhe dizia. Ou para mim mesmo, por não amar C. o suficiente a ponto de fazê-la acreditar em si mesma.