terça-feira, julho 14, 2009


Reticências.

(...).

- Você não entenderia.

Ele abaixou a cabeça, e virou-se para a janela, esperando por uma resposta. Uma atitude. Queria que ela percebesse que não conseguia pedir. Não conseguia dizer. Apenas deixar que ela consertasse tudo...

- O que eu não entenderia? Como se você soubesse... Você já amou alguém? Já amou tanto alguém que só o pensamento de perdê-la lhe fez sentir nós no estômago?

Ouvindo aquela frase ele parou, se virou e olhou para ela, encostada na parede da pequena sala de jantar. Pensou nela, no seu sorriso, no seu humor seco e na curva do seu pescoço, onde encostava seu queixo para dormir. Queria tanto poder traze-la para perto de si...

- Eu não tenho certeza, Lallie. Mas tenho certeza de uma coisa. Se alguma vez eu lhe magoei, eu não quis magoá-la. Tenho absoluta certeza de que não magoaria você intencionalmente. Eu só respondo aquilo que você me fere. Eu posso não saber muito sobre amor, mas isso eu sei. Sinto muito, mas eu não sei amar alguém... Eu nunca me permiti ser amado desse jeito...

- Não sinta. Às vezes você tem que experimentar as coisas amargas para conseguir apreciar as coisas doces. Mas você não consegue apreciar o açúcar até que todo o gosto amargo acabe. - Ela passou de leve o polegar sobre a parte de dentro do pulso dele e os pêlos do seu braço se arrepiaram. - O que seus pais fizeram não teve nada a ver com você, que era uma criança. Se ela era infeliz porque seu pai tinha ido embora, tinha outras maneiras muito mais nobres de lidar com isso. Se sua mãe foi infeliz porque seu pai tinha casos, havia outras maneiras de ela lidar com isso. O que essas pessoas fizeram não foi culpa sua. Não sei quanto a você, mas eu não pretendo pagar pelos erros dos outros o resto da minha vida.

Sentindo a boca seca, umedeceu os lábios. E continuou a falar:

- Eu perdôo você. Suas mentiras. Sua promessa não cumprida, suas explosões de raiva... Não porque a Bíblia me manda perdoar. Acho que não sou tão boa cristã, porque simplesmente não sou magnânima. Eu o perdôo porque, tentando perdoá-lo, fico livre de toda a raiva e de toda a amargura do passado, e é isso que eu quero para você também. Pensei sobre o que fiz, e sinto muito tê-lo magoado, Mick. Mas não me arrependo de tê-lo conhecido e de ter me apaixonado por você. Amar você destruiu meu coração e me causou muita dor, mas me fez uma pessoa melhor. Eu te amo, Mick, e espero que algum dia você encontre alguém que possa amar. Você merece mais na vida do que várias mulheres em série com quem você não se importa de verdade, e que também não se importam tanto com você. Amar você me ensinou isso. Me ensinou como é sentir amor por um homem. E espero que algum dia eu possa encontrar alguém que vai me amar do jeito que você não pôde. Por que eu mereço mais que uma série de homens que não se importam comigo. - Depois de dizer isso, seu olhar se voltou para os olhos dele: - Eu vim aqui esta noite para lhe dar o livro e para dizer adeus.

- Você está indo embora? - Ele ficou admirado pela maneira como se sentiu ao ouvir aquele adeus.

- É. Eu preciso realizar meu sonho, Mick. Uma casa na árvore, assoalho de madeira, cama king-size e alguém para eu abraçar a noite inteira. Eu quero uma família, não uma coletânea de parentes em algum álbum... Quero ser feliz, e jamais pensei em sobreviver com pouco. Com sobras. Não posso fazer isso, com o que a vida me presenteou. Eu quero um filho, e sonhei tanto com seu rostinho... Sabe, o pior da perda é você encarar o monte de sonhos transformados em cacos, aos seus pés.

Foi saindo da sala, em direção a porta, não se virando porque já estava chorando, louca para fugir dali, esparramar-se em algum cantinho, e poder soluçar a vontade. As lágrimas desciam pelo rosto, pingavam do queixo, e continuavam a rolar... Chorava pelo sonho que não soubera tornar realidade... Por Ele, que lhe havia entendido muito mais profundamente do que achou que era capaz, e talvez até mais do que ela mesma merecesse. E agora, como é que se dava o próximo passo, sentindo-se incapaz até de respirar?

"Veja só," pensava, parada no saguão do prédio de Mick qual um fantasma, qual um sentimento de culpa, qual um machucado que já teria formado a casquinha, mas de repente volta a sangrar. "Veja só o que restou de mim. Fui dar um passeio e me virei pelo avesso. Aí, me perdi, mas agora estou tentando me achar". Sentia-se ridícula, de verdade. Sentia-se um espetáculo à parte, uma história para chorar, uma aberração. "Deveriam tirar uma foto minha, colocar o meu pôster na parede de todas as escolas, nas livrarias ao lado dos romancinhos do tipo Sabrina e dos livros de auto-ajuda que falam de encontrar sua alma gêmea, alguém com quem compartilhar a vida, um verdadeiro amor. Eu poderia servir de aviso, e evitar que as meninas seguissem o meu destino, acreditar em sonhos, em amor...". - Eu quero uma casa com assoalho de tábua corrida – pensou alto - e não quero que ninguém mais entre nela.

Naquela tarde, caminhou durante horas a fio, até que as ruas, as calçadas, os prédios se tornaram um borrão acinzentado. Lembrava-se de ter comprado uma limonada para tomar e, depois de algumas horas, parado para fazer xixi num terminal de ônibus, de que, em algum momento, o tornozelo que estivera engessado começou a latejar. Ignorou o fato. A dor maior era a de dentro. Continuou caminhando. Caminhando para o sul, depois para o leste, atravessando bairros estranhos, passando por trilhos de bonde, bocas de fumo incendiadas, fábricas abandonadas, pelas curvas lentas e salobras do Centro. De alguma forma, achou que iria percorrer o caminho todo até Araçatuba.

Quando chegou ao edifício, várias horas depois, ainda estava rindo, lembrando da cigana na Maria Paula, a maior chuva desabando e ela lhe pedindo para ler sua mão. Deveria ter prestado mais atenção. Mas qual eram as palavras? Era ela que sempre ficaria com a dor, e mesmo assim, seria ela que teria que curar feridas, abrindo mão de ser cuidada. Parecia que seu poço não tinha fim, não havia nenhuma cama elástica como nos desenhos e livros de auto-ajuda, apenas uma grande e velha pá, dizendo “Vamos, ainda tem mais fundo pra você cavar”.

"Ah, Se minha avó me visse agora, coitada... tantas esperanças depositadas... “Que rostinho lindo!”, dizia, segurando-me o queixo com a mão em concha, e em seguida balançava a cabeça sem sequer se dar ao trabalho de dizer o resto. Pois, eis-me aqui: trinta e seis anos, com os quarenta já despontando no horizonte. Bêbada. Gorda. Só. Desamada. E, pior de tudo, um clichê, espécie de Ally McBeal e Bridget Jones juntas."

A melhor opção, resolveu, seria se esconder no armário e se fingir de morta, quando chegasse ao apartamento. Apertar o travesseiro com força contra o rosto, estar na cama, enfiada embaixo da colcha escocesa estampada de marrom e vermelho, lendo depois de já ter passado a hora de dormir, sentindo a presença silenciosa dele perto, percebendo o peso do orgulho e do amor dele como se fossem coisas tangíveis, qual água morna. Queria que ele colocasse a mão na minha testa como costumava fazer, queria perceber o sorriso na sua voz quando ele dissesse: “Ainda está lendo?”, Como ela queria isso!

Levou um susto quando sentiu o peso da mão dele em seu ombro, quando estava abrindo a porta do seu apartamento. Ele tinha esquecido de lhe devolver a chave, pensou. Mas não foi isso o que seus ouvidos captaram.

Não vou deixar você ir embora — falou ele.

Ficou ali, de costas, pensando que agora poderia deixá-lo perceber o que era “sentir muito”. Uma pancada com a porta na sua cara, talvez lhe fizesse sentir toda a dor que tinha acalentado durante aquele tempo. E o que iria adiantar? Nada. Ele era mais teimoso que uma mula, e nunca mais o teria ali. Sem ele, não dava pra ficar... E se voltou devagar, meio sorriso, pra disfarçar... A vida era muito bonita para devolver picuinhas. Depois, ela sabia como ninguém cuidar de alguém ferido.

E não precisa — disse-lhe, enfiando o rosto em seu pescoço, sentindo seu cheiro, o da fumaça adocicada, o do creme de barbear e o do xampu, glorificada por estar entre os seus braços, pensando que era exatamente isso que ela queria, o que sempre quis: o amor de um homem que era maravilhoso e meigo e que, acima de tudo, lhe compreendia. — Nunca mais vai precisar.

- Eu não sei o que é amor, Lallie. Mas, pode ser isso o que estou sentindo, e vou te confessar uma coisa: não quero descobrir o nome desse sentimento. Pra que nomear? Eu sei o que é a verdadeira tristeza. Posso explorá-la todas as noites, como uma criança que perde o dente e não consegue parar de passar a língua pelo buraco que ficou na gengiva amolecida de onde saiu o dente. Sou assim, com a sua falta. A escolha é sua, imagino estar lhe dizendo com o meu silêncio. É a sua vez, o jogo é seu, a cartada é sua. Porque eu consigo silenciar essa parte de mim que fica imaginando coisas, que quer saber como você fez a escolha: não pergunto, nem telefono. Não envio um cheque, uma carta, nem sequer um cartão. Eu acordo, faço ginástica, vou para o escritório enfrento a rotina, tentando manter a pontinha da língua longe daquele buraco no meu sorriso. Mas no fundo eu sei que só conseguirei adiar isso até um certo ponto, que nem mesmo a minha covardia poderá evitar o inevitável. Em algum lugar de mim, você está trancada, e eu não quero ter certeza do que sinto quando você já não estiver mais por perto. Eu enlouqueceria se visse você com outro, Lallie...

Eu aprendi muito este ano — começou. Respirou fundo, trêmula, e disse a si mesma: Não chore. — Aprendi que nem sempre as coisas acontecem do jeito que planejamos, ou do jeito que achamos que devem ser. E aprendi que há coisas que dão errado e nem sempre podem ser consertadas ou voltar ao que eram antes. Aprendi que algumas coisas quebradas permanecem quebradas, e aprendi que se pode passar por maus momentos e continuar procurando outros melhores, contanto que tenhamos gente que nos ame — fez uma pausa e passou uma das mãos pelos olhos. — Você é a minha alegria. As coisas acontecem, sabe? É uma das grandes lições da terapia. As coisas acontecem e não há como fazer com que "desaconteçam". Você não pode passá-las a limpo, não pode voltar o relógio, e a única coisa que dá para mudar, a única Coisa com que vale a pena se preocupar é a maneira como você se deixa afetar por elas. Não dá pra continuar a vida, sem você ao meu lado.

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