terça-feira, outubro 30, 2007


UMA CHANCE.

Ouviu o barulho de seus pés pela areia, e esperou que ele estivesse a sua frente, para convidá-lo a sentar ao seu lado, na toalha que havia estendido na praia. O sol estava se pondo, e ele por sua vez, vendo-a ali, sozinha, abriu-se num sorriso inevitável, aquela mulher arrebatadora e linda lhe tirava do sério.

- O que foi, Esmeralda? O que tanto quer falar comigo?

- Um dia você será capaz de me compreender como eu o compreendo? De me amar tanto quanto eu te amo? De pensar em mim e me desejar ter ao seu lado, como eu desejo você?

Silêncio hesitante. Roberto não conseguia falar sobre o que sentia, sobre o que passava por dentro de si. Sempre fora assim, e não sabia se queria tentar ser diferente, começar a dizer a verdade dos fatos.

- Sou estranho assim mesmo, Esmeralda. Trate-me bem, e eu a trato bem. Trate-me mal, e eu a tratarei do mesmo jeito. Se for gentil comigo, serei gentil também. Não sou um canalha, mas estou bem longe de ser um anjo.

- Você sempre foge das perguntas, não é? Acha isso direito?

Roberto ergueu a mão, num gesto irritado, e levantou-se, indicando que iria embora, mas quedou-se, de pé, inerte. No coração, uma vontade imensa de falar sobre o seu desejo de começar nova vida com ela, mas também um medo indizível do desconhecido, uma sensação de abandono, de pesar, de tanta coisa que jamais havia experimentado. Sabia que era frio e indiferente, até rude com Esmeralda. Quando se sentia acuado daquela maneira, suas palavras se tornavam mecânicas e impessoais, para em nada demonstrar o quanto se importava. O quanto estava apaixonado. Aquela mulher não lhe saía do pensamento!

- Ah, Roberto, sente aqui-se, ao meu lado, a praia está linda. E depois, veja isto, lembra do diário que falei que um dia viraria livro? É esse aqui.

E quando sentou-se, ela lhe passou um caderno todo decorado, colorido, com muitas borboletas de pano coladas na capa, quase parecendo que, se ele não segurasse bem, as folhas poderiam tomar forma e voar, sair pelo ar.

- Qual é a história dele?

- Começa num dia de tempestade, onde a ressurgência provocou uma brusca queda de temperatura, e a brisa que vinha do mar enregelava até os ossos duas pessoas apaixonadas na praia. Ele termina dizendo que o único conselho que podia dar era que todos que amavam deviam saber barlaventear.

- Barlaventear. E o que é isso, afinal?

- Avançar o navio na direção de onde o vento sopra. Deixar o coração seguir o sentimento. Esse é o caminho.

- E o que você quer sugerir com isso?

- Quero que você deixe livre aquilo que sente.

- Ah, para que tudo tome conta de mim, e eu me veja em alvoroço geral? E deu uma risada gostosa, inclinando a cabeça para trás, os cabelos acariciados pelo vento da tarde. – Você quer vencer, então?

- Às vezes, eu penso que tudo o que eu quero na vida é somente uma coisa. Ver você feliz. Porque não há forma melhor para eu ser feliz. E virou-se para o mar, que sempre a fascinara. Era um encanto pessoal, um quê de mistério, uma beleza que a arrebatava desde menina, quando se punha a admirar as ondas que quebravam na praia, do alto do promontório, de onde morava sua avó.

- O que há comigo, Esmeralda? - perguntou agressivo Roberto, sentindo que a ternura na voz dela estava lhe minando muitas defesas.

- Eu podia fazer como ajo sempre, não é Roberto? Sair muito brava, batendo o pé, prometendo jamais lhe dirigir a palavra, depois do modo como me tratou. É isso o que você quer? Que eu lhe ajude a ficar longe de mim?

- Para mim, está ótimo.

- Não está não, Roberto. - E levantou-se, caminhando até perto de onde as ondas alcançavam a praia, deixando que molhassem seus pés descalços. – Você é um homem difícil, querido. Um temperamento forte, não gosta de ser contrariado, mas isto é só uma casca. Por dentro, há um homem gentil, amoroso, esperando que eu o desperte novamente. Não esqueça que eu já vi e amei esse homem em você.

Roberto olhava-a, admirado e encantado. Adorava saber que ela o compreendia por inteiro, e gostava dele, conhecendo seus defeitos e qualidades, não deixando nada de fora, nem pedindo qualquer mudança. Ser aceito era algo bom de sentir. Mas ela era uma escolha que exigia muita coragem. E não sabia se valia a pena tanta felicidade. Será que ele era merecia ser feliz assim? Encarou o olhar dela, e tentou dissimular o que estava sentindo, mais uma vez.

- Não estou entendendo aonde você quer chegar com essa conversa, Esmeralda. Por que está mostrando e falando tudo isso?

Esmeralda baixou os olhos, visivelmente entristecida. Não sabia mais o que podia dizer. Não estava ainda bem certa do que significava tudo aquilo, mas sentia que seu coração tinha razão. Roberto era o homem da sua vida, o homem de seus sonhos.

- Sabe, se hoje eu estou disposta a esperar por você, é porque arduamente conquistei isso, através de tudo aquilo que vivi. É o momento certo. Sei que ainda tenho um espírito meio estouvado e rebelde, mas meu coração, de alguma maneira, tem dado um jeito de me lembrar do que sinto, e do quanto é importante você para mim, quando quero partir. Como esquecer o único homem que amei em toda minha vida? Eu não posso ir, sem tentar. Sei que você finge não acreditar, mas você sabe que, às vezes, Deus nos permite ver as coisas de ontem, para que possamos compreender as de hoje, e melhorar as de amanhã. Será que realmente não sente mais nada por mim?

- O que houve entre nós, Esmeralda, não pode justificar sua insistência. Não foi você que me disse que eu iria sentir sua falta, a tal ponto que iria doer?

- E o que aconteceu depois? Eu descobri que te amo de verdade. Que o amo e posso vê-lo partir, se isso for o caminho que o fará feliz. Não se pode determinar a quem gostar, e nem por quanto tempo. Quero que você não resista. Desarme-se, se entregue. Só desta vez. Fica tão difícil e cansativo caminhar contra a força do vento, querido.

- Ninguém lhe pediu para fazer isso. E depois, acho que tudo o que você está falando são bobagens, crendices.

- Não precisa concordar comigo. Divirja quando quiser de mim, querido, mas peço, com amor. Que eu também possa falar o que sinto, sem medo de contrariá-lo, sem precisar esconder alguma coisa. Que eu possa te amar e te respeitar, sempre. Sem brigas, sem gritos, sem agressividade. Confie em mim. Permita que eu possa amar o homem maravilhoso que você é. Uma tentativa. É isso o que estou lhe pedindo, neste momento. Por favor, uma oportunidade.

Roberto levantou-se, e baixou os olhos, fingindo cavoucar com o pé a areia fina da praia, enquanto ruminava mil pensamentos. Sentia que ela tinha razão. Também, que mal haveria em lhe dar uma chance? E, depois, sabia o quanto gostava dela, e já andava meio cansado de ficar sozinho. De andar desconfiando e armado perto dela. Mordeu o lábio inferior, e encarou-a por alguns segundos, o vento mais forte balançando seus cabelos. Ela o olhava com o olhar úmido, fazendo com que seu coração se sentisse em torniquete. Quanta vontade de tomá-la nos braços, de beijar sua boca!

- Já esqueceu tudo o que lhe falei no começo do ano? – respondeu, taciturno, querendo fugir daquilo tudo.

- Cada um faz aquilo que pode, no momento. E vai até onde pode. Quem não sabe nadar, não se atira no mar. E quem se atira, corre o risco de morrer afogado. Ou então, acaba aprendendo sozinho. É a lei, é a vida. Ninguém pode tentar ser mais do que é, nem andar mais rápido do que suas pernas permitem. Aprendi isso, Roberto. Da forma mais difícil: ficando longe de você.

- Sim, pois então? Cada um faz o que pode, e não há nada de errado nisso. Isso tudo é muito confuso, não sei se acredito em alguma coisa.

- Vai acreditar, um dia. Ou não. O que importa é que eu vou estar ao seu lado. Para o que tiver que ser. Sempre.

Roberto estremeceu, imaginando que ela poderia simplesmente seguir sua vida, longe dele, aquele filho que tanto queriam juntos, com outro. Bastava um não incisivo. Será que era por estar tão apaixonado, que a simples visão desse pensamento lhe tirava o ar? Tinha medo de repetir o gesto nefasto do passado, de sofrer todo aquele conflito que vivera no seu passado, mas tinha certeza de que já não queria mais viver sem ela. De cabeça baixo, olhando para o mar, não percebeu quando, em silêncio, Esmeralda aproximou-se e tocou seu rosto, indo da sua testa, passando suavemente por seu nariz, até deixar seus dedos passearem por sua boca.

- Decorei seu rosto, meu amor. Sei a cor de seus olhos, e o significado, e me assombro ao perceber quando ficam escuros, e você mais profundo e verdadeiro, e vão ficando mais claros, à medida que você consegue mascarar o que sente. A onda de emoção que irradiam quando me vêm. Mesmo longe, seus pensamentos me alcançam, e são capazes de me levar até o coração sua intenção. As coisas nunca são o que parecem, não é? Confie em mim. Já reagi tanto a forma como você me trata. Na verdade, acho que passamos um bom tempo nos defendendo do que sentíamos, não é? Nada é impossível. Existem coisas difíceis, e outras fáceis. Mas só é impossível aquilo que realmente não se deseja. - E, passando a mão pela sua face, ela disse suavemente: - Roberto, você é tão humano quanto eu. As mesmas carências, sonhos. Desejos. Ambos somos orgulhosos. Temos muito amor guardado dentro de nós. A vida nos fez sofrer, e isso não nos paralisou. O que falta é alguém para dar o primeiro passo. E esse alguém pode ser eu. O primeiro passo para sermos felizes. Por isso eu estou aqui, pedindo uma chance.

Roberto a olhava, sem nada dizer. Sentia o peito oprimido, não suportava mais guardar aquele sentimento trancado, escondido de todos. Amava Esmeralda, confiava nela. Sabia que era imenso o seu conflito interno. Se por um lado sua alma e seu coração pediam para ficar com ela, por outro, sua mente lhe dizia para partir e não se envolver mais com aquilo. Que todo o sentimento desta mulher podia ser fogo que logo que se consumia se extinguia. Que não era bom se arriscar muito, quando se amava uma mulher. E, mesmo assim, sentiu que seus dedos tomavam força, e alcançavam seu braço. Puxou-a para si, estreitando-a nos braços, e beijando-a com toda a volúpia represada durante meses, toda amorosidade controlada até então. Quando terminou, estava tão emocionado, que não conseguia falar. Talvez fosse somente isso mesmo, o destino implacável não nos deixava fugir de suas teias.

Enquanto Roberto ainda estava surpreso ao perceber o quanto amava aquela mulher, na ponta dos pés, Esmeralda enlaçou seu pescoço e o abraçou apertado. Quando o soltou, Roberto tinha os olhos cheios de lágrima, e num meio sorriso, perguntou se estava com medo daquilo que podia vir, agora que tinham decidido ficar juntos.

Ela sorriu, e naquele momento soube que ao lado dele sentia-se segura. Em casa. Carinhosamente, segurou seu queixo e o beijou delicadamente, tremendo de satisfação quando os braços dele escorreram por suas costas. Olhando-o com ternura, sussurrou rouca:

- Não há o que eu tema e não enfrente, se sua mão na minha mão, Amor da minha Vida.

terça-feira, outubro 23, 2007


PERSEVERAR.


A vida tem horror à mesmice.

Um amigo, cientista especialista em bambus, me emprestou um livro-arte maravilhoso sobre bambus. Aprendi que os bambus florescem. Espantei-me. Eu nunca vi um bambu florido. Bambus, pelo que eu pensava saber, se reproduzem assexuadamente: a planta mãe vai soltando brotos iguais a si mesma. Mas o livro me disse que em períodos aproximados de cem anos, uma mesma espécie de bambu floresce, no mundo inteiro. Depois da orgia sexual, da troca de gens, da ejaculação de sementes, morrem os bambús. Os novos nascerão das sementes. Não serão mais os mesmos que eram. Porque a semente é precisamente isso: a vida se recusando a ser a mesma; a vida sabendo que, para continuar viva, precisa "deixar de ser" o que era para "vir a ser" uma outra coisa.

Se não houver a mistura de gens, se a planta quiser ficar sempre a mesma, ela se degenera. É preciso deixar de ser o mesmo e se transformar em outro. Vale para as plantas a sabedoria evangélica: "Quem quiser salvar a sua vida perde-la-á". Quem permanecer o mesmo, morrerá. Ou se transformará numa pedra. Na procriação existe sempre um pouco de morte. "Morre e transforma-te!", dizia Goethe. "Somente onde há sepulturas há também ressurreições", dizia Nietzsche. "Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só. Mas se morrer dá muito fruto", dizia Jesus.
"Casca vazia. A cigarra cantou-se toda". Haikai, se não me engano, de Bachô.

Antes da casca vazia a cigarra cantava canções subterrâneas - a vida acontecia nas profundezas da terra. Mas, de repente, a vida tornou-se outra. A cigarra subterrânea começou a sonhar sonhos de ar livre e vôos. Saiu da terra. Sua casca não era mais capaz de suportar a vida que crescia dentro dela. Arrebentou. E dela surgiu um outro ser, alado, pneumático. Nós, seres humanos, somos como as cigarras. Só que nossas cascas são feitas com palavras. Crescendo a vida, as cascas verbais se transformam em prisões. Têm de ser abandonadas, para que a vida continue. "A serpente que não pode livrar-se de sua pele morre. Assim são os espíritos que são impedidos de mudar suas opiniões. Eles cessam de ser espírito": aforismo de Nietzsche.

O ecumenismo foi uma florescência de bambús: o desejo de fazer trocas, depois de séculos, o desejo de transformar-se em semente, de cair na terra, de deixar de ser o que era, para ser outra coisa. Possibilidade de "nascer de novo": o velho voltando a ser criança...

Rubem Alves.

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Colorir é uma maneira de deixar o cinza de antes definitivamente para trás. E "a verdadeira medida de um homem não é como ele se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas como ele se mantém em tempos de controvérsia e desafio", já dizia Martin Luther King.

segunda-feira, outubro 15, 2007


O que não foi é o que fica.

Já faz tempo. Lembra que voltou atrás, naquele dia, por sobre seus passos feitos, atrás da agenda. E depois disso, fez e refez o caminho inúmeras vezes, esperando encontrar em algum momento, o momento onde esquecera de atuar. Naquele dia, apressado, pediu um café e ficou deleitado com a morena, ao lado. Que distraída, sorvia o líquido quente fazendo beicinho. Ainda é capaz de relembrar os pequenos detalhes que o encantaram, como seus olhos se revirando, e o sorriso se formando, sem precisar de nada mais que ela mesma. Como se fosse armadilha, ficou preso na visão de alguém que era feliz sem precisar de alguém ao lado pra admitir isso. Foi enquanto ela ria, sozinha, que começou a criar a história deles dois, que ainda não era, mas já havia até o depois, em sua mente, quando ele tomaria um taxi, e a levaria para seu apartamento. Uma urgência em experimentar aquela felicidade, uma vontade de ser feliz sozinho! Rememorou o poema, a notícia do dia e foi na hora da prosa que iria iniciar que percebeu o vazio da xícara. Ela saiu sem lhe dizer nem adeus, foi embora e nem reparou no bilhete com seu telefone na sua mão, quente e úmido agora, nem no sorriso preparado na sua face pra dizer como era lindo aquele sorriso seu. Para ele, não ficou nem um olhar. Apenas aquela coisa, que urdia por dentro, tomava conta do seu ser, que exigia que ele parasse o tempo e fizesse alguma coisa. Aquele medo de ser ela, e ter sido, então. Como se ele tivesse que dobrar à esquerda, e acenado para a direita. A vida então virou luminosa, como a avenida maria de paula que atravessava todos os dias, lhe trazia para o trabalho, lhe torcia e se esboçava negra na volta para casa. Manhãs de café no Bar da Esquina, pra lembrar que a mulher certa havia visitado uma tarde, seu dia...

Baile da TRISTEZA.

Quando fez dez anos, amanheceu e o espelho lhe disse que era capaz. De beijar Maria Carolina. Arrumou com gosto o topete, pelo prazer de dizer basta as noites de sono que sempre antecedia explicando a Maria, na penumbra do seu quarto, todas as incidências da sua jornada no dia. Suas andanças no colégio, o que tinha aprendido, o quanto tinha ficado chateado por ela não lhe ter dado nem um empurrão, quanto mais um abraço ou aperto de mão. Não podia ouvir a sua voz ou sentir o seu contato, mas a sua luz e o seu calor ardiam em cada recanto do seu quarto, e era agora, com a fé dos que ainda podiam contar os seus anos pelos dedos das mãos, que acreditava que a noite era dele. Se fechasse os olhos e mentalizasse bastante, já podia se ver com ela. Às vezes, até o seu pai se irritava, e queria ir falar com a tal da Maria Carolina, porque o via na sala de jantar, chorando às escondidas. Mas aquele alvorecer de Junho prometia. O coração batia forte no peito, como se a alma quisesse abrir caminho, e saltar a fogueira de são joão, ânsia louca pela boca da morena. Saiu apressado, sorriso estampado na face brejeira de moleque acostumado com a rua, calça curta e kichute nos pés. Chegou à esquina, todos os outros três já ao redor da bacia da Maria, esperando por ele, que chegava assorbado. Foi se desculpar, mas Maria Carolina, dedo em riste, pediu silêncio, era preciso ouvir as vozes dos mortos do cemitério do outro lado da rua. Fez gestos assustando os colegas ao lado, e elevou a vela, que começou a pingar acesa na bacia. Eu, que agora me achava digno de beijar e ser feliz, permaneci atento, e não desviei milímetro dos olhos dela, pra mostrar o homem corajoso que eu era, que não tinha medo, e tinha certeza que era minha a letra do primeiro beijo seu. Tentei até ensaiar uma reza, pra que se formasse mais rápido a inicial do meu nome, e mesmo ficando inseguro, em nenhum momento baixei a vista como os outros, na espera pelo acontecimento. Resolvi prometer, iria parar de fazer xixi na cama, se a tal letra fosse dele, se o beijo, se a boca, ah, Maria Carolina, por você não verteria mais líquido no colchão! E então, um grito, era o Maurinho, explodindo em si dizia que era ele, era um M, só podia ser M de Maurinho. Wellington, que sempre fora tímido e isolado berrou mais alto, onde já se viu não ver logo o W, dele próprio, forte na bacia com água? Eu e Jacinto emudecemos, e Maria Carolina, baixando a vela, disse que era M sim, mas de Maria Carolina. Que dizia que ela não era de nenhum deles, mas só dela própria. Inteirinha dela. E se foi, deixando vela, bacia e lenço seu. Os 4 patetas, silenciosos, voltaram cabisbaixos para casa, eu então ia magoado. Passei pela ponte, e joguei a moeda do sorvete de Maria Carolina. Prometi naquele dia que nunca mais ia cumprir promessa minha. E durante muito tempo, nunca mais houve a ilusão de estar apaixonado. Maria Carolina não entendeu, o M era de Morte. Ali, ela matou meu coração de menino de fé.

Des-Calabro

- "Não consigo entender suas atitudes, moça. Quando saí, você era luz, firme naquilo que havia descoberto, certeira naquilo que sentia. Não havia dúvidas, apenas lágrimas. Hoje, toquei a porta, e tudo escuro. Velas iluminavam parcialmente o caminho, e demorei para conseguir chegar até você. O que mudou daquilo que tinha tanta fé?"

- Sabe, uma coisa que não compreendo é se julgar no escuro pelas velas acesas. Pensar que não há mais clareza, pelo bréu do aposento. Talvez eu apenas expresse o que sinto em sinfonia silenciosa. Estardalhaços não permanecem, querido. São como a paixão, ruidosa. Prefiro ser eco. Talvez silêncio.

Ana, Blues.

QUANDO Ana me deixou - essa frase ficou na minha cabeça, de dois jeitos - e DEPOIS que Ana me deixou. Sei que não é exatamente uma frase, só um começo de frase, mas foi o que ficou na minha cabeça. Eu pensava assim: quando Ana me deixou - e essa não-continuação era a única espécie de continuação que vinha. Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela ausência de Ana, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco sem Ana - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou ações. Ou não-palavras e não-ações, porque o silêncio e a imobilidade foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo, para ocupar meus dias, meu apartamento, minha cama, meus passeios, meus jantares, meus pensamentos, minhas trepadas e todas essas outras coisas que formam uma vida com ou sem alguém como Ana dentro dela.

Quando Ana me deixou, eu fiquei muito tempo parado na sala do apartamento, cerca de oito horas da noite, com o bilhete dela nas mãos. No horário de verão, pela janela aberta da sala, à luz das oito horas da noite podiam-se ainda ver uns restos de dourado e vermelho deixados pelo sol atrás dos edifícios, nos lados de Pinheiros. Eu fiquei muito tempo parado no meio da sala do apartamento, o último bilhete de Ana nas mãos, olhando pela janela os vermelhos e os dourados do céu. E lembro que pensei agora o telefone vai tocar, e o telefone não tocou, e depois de algum tempo em que o telefone não tocou, (...) e eu continuei por muito tempo sem salvação parado ali no centro da sala que começava a ficar azulada pela noite, feito o interior de um aquário, o bilhete de Ana nas mãos, sem fazer absolutamente nada além de respirar.

Depois que Ana me deixou - não naquele momento exato em que estou ali parado, porque aquele momento exato é o momento-quando, não o momento-depois, e no momento- quando não acontece nada dentro dele, somente a ausência de Ana, igual a uma bolha de sabão redonda, luminosa, suspensa no ar, bem no centro da sala do apartamento, e dentro dessa bolha é que estou parado também, suspenso também, mas não luminoso (...) De todos aqueles dias seguintes, só guardei três gostos na boca – de vodca, de lágrima e de café. O de vodca, sem água nem limão ou suco de laranja, vodca pura, transparente, meio viscosa, durante as noites em que chegava em casa e, sem Ana, sentava no sofá para beber no último copo de cristal que sobrara de uma briga.

O gosto de lágrima chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama grande, sem Ana, cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda guardavam o cheiro dela, e então me batia e gemia arranhando as paredes com as unhas, abraçava os travesseiros como se fossem o corpo dela, e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos. O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes na agência, entre textos de publicidade e sustos a cada vez que o telefone tocava. Porque no meio dos restos dos gostos de vodca, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo na boca do estômago e os olhos inchados, principalmente às sextas-feiras, pouco antes de desabarem sobre mim aqueles sábados e domingos nunca mais com Ana, vinha a certeza de que, de repente, bem normal, alguém diria telefone-para-você e do outro lado da linha aquela voz conhecida diria sinto-falta-quero-voltar. Isso nunca aconteceu.

O que começou a acontecer, no meio daquele ciclo do gosto de vodca, lágrima e café, foi também o gosto de vômito na minha boca.Porque no meio daquele momento entre a vodca e a lágrima, em que me arrastava da sala para o quarto, acontecia às vezes de o Pequeno corredor do apartamento parecer enorme como o de um transatlântico em plena tempestade. Entre a sala e o quarto, em plena tempestade, oscilando no interior do transatlântico, eu não conseguia evitar de parar à porta do banheiro, no pequeno corredor que parecia enorme. Eu me ajoelhava com cuidado no chão, me abraçava na privada de louça amarela com muito cuidado, com tanto cuidado como se abraçasse o corpo ainda presente de Ana, guardava prudente no bolso os óculos redondos de armação vermelhinha, enfiava devagar a ponta do dedo indicador cada vez mais fundo na garganta, até que quase toda a vodca, junto com uns restos dos sanduíches que comera durante o dia, porque não conseguia engolir quase mais nada, naqueles dias, e o gosto dos muitos cigarros se derramassem misturados pela boca dentro do vaso de louça amarela que não era o corpo de Ana. Vomitava e vomitava de madrugada, abandonado no meio do deserto como um santo que Deus largou em plena penitência - e só sabia perguntar por que, por que, por que, meu Deus, me abandonaste? Nunca ouvi a resposta.

Um pouco depois desses dias que não consigo recordar direito - nem como foram, nem quantos foram, porque deles só ficou aquele gosto de vodca, lágrima, café e às vezes também de vômito; misturados, no final daquela fase, ao gosto das pizzas que costumava pedir por telefone, principalmente nos fins-de-semana, e que amanheciam abandonadas na mesa da sala aos sábados, domingos e segundas, entre cinzeiros cheios e guardanapos onde eu não conseguia decifrar as frases que escrevera na noite anterior, e provavelmente diziam banalidades como volta-para-mim-Ana ou eu-não-consigo-viver- sem-você, palavras meio derretidas pelas manchas do vinho, pela gordura das pizzas -, depois daqueles dias começou o tempo em que eu queria matar Ana dentro de tudo aquilo que era eu, e que incluía aquela cama, aquele quarto, aquela sala, aquela mesa, aquele apartamento, aquela vida que tinha se tornado a minha depois que Ana me deixou.

Mandei para a lavanderia os lençóis verde-clarinhos que ainda guardavam o cheiro de Ana - e seria cruel demais para mim lembrar agora que cheiro era esse, aquele, bem na curva onde o pescoço se transforma em ombro, um lugar onde o cheiro de nenhuma pessoa é igual ao cheiro de outra pessoa -, mudei os móveis de lugar, comprei um Kutka e um Gregório, um forno microondas, fitas virgens de vídeo, duas dúzias de copos de cristal, e comecei a trazer outras mulheres para casa. Mulheres que não eram Ana, mulheres que jamais poderiam ser Ana, mulheres que não tinham nem teriam nada a ver com Ana. Se Ana tinha os seios pequenos e duros, eu as escolhia pelos seios grandes e moles, se Ana tinha os cabelos quase louros, eu as trazia de cabelos pretos, se Ana tinha a voz rouca, eu as selecionava pelas vozes estridentes que gemiam coisas vulgares quando estávamos trepando, bem diversas das que Ana dizia ou não dizia, ela nunca dizia nada além de amor-amor ou meu-menino-querido, passando os dedos da mão direita na minha nuca e os dedos da mão esquerda pelas minhas costas. Vieram Gina, a das calcinhas pretas, e Lilian, a dos olhos verdes frios, e Beth, das coxas grossas e pés gelados, e Marilene, que fumava demais e tinha um filho, e Mariko, a nissei que queria ser loura, e também Marta, Luiza, Creuza, Júlia, Deborah, Vivian, Paula, Teresa, Luciana, Solange, Maristela, Adriana, Vera, Silvia, Neusa, Denise,Karima, Cristina, Márcia, Nadir, Aline e mais de quinze Marias, e uma por uma das garotas ousadas da rua Augusta, com suas botinhas brancas e minissaias de couro, e dessas moças que anunciam especialidades nos jornais.

Eu acho que já vim aqui uma vez, alguma dizia, e eu falava não lembro, pode ser, esperando que tirasse a roupa enquanto eu bebia um pouco mais para depois tentar entrar nela, mas meu pau quase nunca obedecia, então eu afundava a cabeça nos seus peitos e choramingava babando sabe, depois que Ana me deixou eu nunca mais, e mesmo quando meu pau finalmente obedecia, depois que eu conseguia gozar seco ardido dentro dela, me enxugar com alguma toalha e expulsá-la com um cheque cinco estrelas, sem cruzar - então eu me jogava de bruços na cama e pedia perdão a Ana por traí-la assim, com aquelas vagabundas. Trair Ana, que me abandonara, doía mais que ela ter me abandonado, sem se importar que eu naufragasse toda noite no enorme corredor de transatlântico daquele apartamento em plena tempestade, sem salva-vidas.

Depois que Ana me deixou, muitos meses depois, veio o ciclo das anunciações, do I Ching, dos búzios, cartas de Tarot, pêndulos, vidências, números e axés - ela volta, garantiam, mas ela não voltava - e veio então o ciclo das terapias de grupo, dos psicodramas, sonhos junguianos, workshops transacionais, e veio ainda o ciclo da humildade, com promessas a Santo Antônio, velas de sete dias, novenas de Santa Rita, donativos para as pobres criancinhas & velhinhos desamparados, e veio depois o ciclo do novo corte de cabelos, da outra armação para os óculos, guarda-roupa mais jovem, Zoomp, Mr. Wonderful, musculação, alongamento, ioga, natação, tai-chi, halteres, cooper, e fui ficando tão bonito e renovado e superado e liberado e esquecido dos tempos em que Ana ainda não tinha me deixado que permiti, então, que viesse também o ciclo dos fins de semana em Búzios, Guarujá ou Monte Verde (...).

Passou-se tanto tempo depois que Ana me deixou, e eu sobrevivi, que o mundo foi-se tornando aos poucos um enorme leque escancarado de mil possibilidades além de Ana. Ah esse mundo de agora, assim tão cheio de mulheres e homens lindos e sedutores e interessantes e interessados em mim, que aprendi o jeito de também ser lindo, depois de todos os exercícios para esquecer Ana, e também posso ser sedutor com aquele charme todo especial de homem-quase-maduro-que-já-foi-marcado-por-um-grande-amor-perdido, embora tenha a delicadeza de jamais tocar no assunto. Porque nunca contei a ninguém de Ana. Nunca ninguém soube de Ana em minha vida. Nunca dividi Ana com ninguém. Nunca ninguém jamais soube de tudo isso ou aquilo que aconteceu quando e depois que Ana me deixou.

Por todas essas coisas, talvez, é que nestas noites de hoje, tanto tempo depois, quando chego do trabalho por volta das oito horas da noite e, no horário de verão, pela janela da sala do apartamento ainda é possível ver uns restos de dourado e vermelho por trás dos edifícios de Pinheiros, enquanto recolho os inúmeros recados, convites e propostas da secretária-eletrônica, sempre tenho a estranha sensação, embora tudo tenha mudado e eu esteja muito bem agora, de que este dia ainda continua o mesmo, como um relógio enguiçado preso no mesmo momento - aquele.

Como se quando Ana me deixou não houvesse depois, e eu permanecesse até hoje aqui parado no meio da sala do apartamento que era o nosso, com o último bilhete dela nas mãos. (...) E para sempre então, agora, me sinto uma bolha opaca de sabão, suspensa ali no centro da sala do apartamento, à espera de que entre um vento súbito pela janela aberta para levá-la dali, essa bolha estúpida, ou que alguém espete nela um alfinete, para que de repente estoure nesse ar azulado que mais parece o interior de um aquário, e desapareça sem deixar marcas.


Caio Fernando Abreu, Os dragões não conhecem o paraíso.

Des_folhando o Paraíso.

"O guardanapo, a frase, a mancha, o medo - isso deve vir mais tarde. Todas essas coisas de que falo agora - as particularidades dos dragões, a banalidade das pessoas como eu -, só descobri depois. Aos poucos, na ausência dele, enquanto tentava compreendê-lo. Cada vez menos para que minha compreensão fosse sedutora a ponto de convencê-lo a voltar, e cada vez mais para que essa compreensão ajudasse a mim mesmo a. Não sei dizer. Quando penso desse jeito, enumero proposições como: a ser uma pessoa menos banal, a ser mais forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz, a navegar com um mínimo de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar quando algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser continuar vivendo. Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se fosse nada.

Nos dias que antecediam a sua chegada, eu acordava no meio da noite, o coração disparado. As palmas das mãos suavam frio. Sem saber por que, nas manhãs seguintes, compulsivamente eu começava a comprar flores, limpar a casa, ir ao supermercado e à feira para encher o apartamento de rosas e palmas e morangos (...) Depois que ele vinha, o bonito da casa contrastando com o feio do meu corpo, tudo aos poucos começava a desabar. Feito dor, não alegria. Agora agora agora vou ser feliz, eu repetia: agora agora agora. (...) e você não sabe mais se não seria preferível aquele pantanal de antes, cheio de possibilidades - que não aconteciam, mas que importa? - a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada. (...) Por situações como essa, eu o amava. E o amo ainda, quem sabe mesmo agora, quem sabe mesmo sem saber direito o significado exato dessa palavra seca - amor. Se não o tempo todo, pelo menos quando lembro de momentos assim".

Caio Fernando Abreu, in Dragões não merecem o paraíso.
O mundo silencia, exigente a sua volta. Se vacilasse, estaria perdendo uma grande oportunidade. Não havia respostas glamourosas, gostava das nozes, do doce, das balas de coco e do seu difícil preparo, da lembrança do puxa-puxa das mulheres da família, e da loucura quando tudo "empedrava"! Viravam numa bacia, e nós, crianças, surrupiavámo-nos todas! O prazer de comer coisas gostosas era o maior desejo de nossos corações. Como dizia José Mindlin, longe de mim vida de vegetariano, "porque vida de vegetariano é uma vida de enganos, tudo o que se busca são alimentos que se pareçam com carne, mas que não o sejam".

E o sorvete de pistache! ah, a cor me fascinava. Toda tarde, a parada obrigatória na sorveteria da esquina. Fui uma doceira incorrigível. Sarapatel, que a vó baiana da amiga vizinha preparava no final de semana. Pequenos rituais de prazer, que trazem momentos com aroma e sabor. Um prazer que centra o sabor na língua e no céu da boca, embora com frequência não comece aí, mas na lembrança. A vida é uma coleção de momentos, e como dizia Vinicius de Moraes, Subamos, subamos acima, subamos além, subamos acima do além".

Invenciones perversas, Estar de Alavela. Às vezes, uma coisa que parece um mal, pode nos ajudar a voltar para o caminho que tínhamos nos desviado. Certos acontecimentos desastrosos, que assim nos parecem a primeira vista, são na verdade, âncoras no mar da nossa vida. Você não precisa se perder, para eu te encontrar.

DES-cobrindo 'pétalas'



IMAGINÁRIO



A beira do mar Aberto.

...................................e de novo me vens e me contas do mar aberto das costas de tua terra, do vento gelado soprando desde o pólo, nos invernos, sem nenhuma baía, nenhuma gaivota ou albatroz sobrevoando rasante o cinza das águas para mergulhar, como certa vez, em algum lugar, rápido iscando um peixe no bico agudo, mas essas outras águas que lembro eram claras verdes, havia sol e acho que também um reflexo de prata no bico da ave no momento justo do mergulho, nessas águas de que me falas quando me tomas assim e me levas para histórias ou caminhadas sem fim não há verde nem é claro, o sol não transpõe as nuvens, e te imagino então parado sozinho sobre a faixa interminável de areia, o vento que bate em teu rosto, as mãos com os dedos roxos de frio enfiadas até o fundo dos bolsos, o vento e novamente o vento que bate em teu rosto, esse mesmo que me olha agora, raramente, teu olho bate em mim e logo se desvia, como se em minhas pupilas houvesse uma faca, uma pedra, um gume, teu rosto mais nu que sempre, à beira-mar, com esse vento a bater e a revolver teus cabelos e pensamentos, e eu sem saber o que me revolve agora quando teu olho outra vez escorrega para fora e longe do meu, entre tua testa larga de onde às vezes costumas afastar os cabelos com ambas as mãos, numa mistura de preguiça e sensualidade expostas, e, quando teu olho se afasta assim, não sei para onde, talvez para esse mesmo lugar onde te encontravas ontem, à beira do mar aberto, onde não penetro, como não te penetro agora, mas é quando a pedra ou faca no fundo do meu olho afasta o teu é que te olho detalhado, e nunca saberás quanto e como já conheço cada milímetro da tua pele, esses vincos cada vez mais fundos circundando as sobrancelhas que se erguem súbitas para depois diluírem-se em pêlos cada vez mais ralos, até a região onde os raspas quase sempre mal, e conheço também esses tocos de pelos duros e secretos, escondidos sob teu lábio inferior, levemente partido ao meio, e tão dissimulado te espio que nunca me percebes assim, te devassando como se através de cada fiapo, de cada poro, pudesse chegar a esse mais de dentro que me escondes sutil, obstinado, através de histórias como essa, do mar, das velhas tias, das iniciações, dos exílios, das prisões, das cicatrizes, e em tudo que me contas pensando, suponho, que é teu jeito de dar-se a mim

(...) percebo farpado que te escondes ainda mais, como se te contando a mim negasse que deliberado a possibilidade de te descobrir atrás e além de tudo que me dizes, é por isso que me escondo dessas tuas histórias que me enredam cada vez mais no que não és tu, mas o que foste, tento fugir para longe e a cada noite, como uma criança temendo pecados, punições de anjos vingadores com espadas flamejantes, prometo a mim mesmo nunca mais ouvir, nunca mais ter a ti tão mentirosamente próximo, e escapo brusco para que percebas que mal suporto a tua presença, veneno veneno, às vezes digo coisas ácidas e de alguma forma quero te fazer compreender que não é assim, que tenho um medo cada vez maior do que vou sentindo em todos esses meses, e não se soluciona, mas volto e volto sempre, então me invades outra vez com o mesmo jogo e embora supondo conhecer as regras, me deixo tomar inteira

(...) e novamente me tomas e me arrancas de mim me desguiando por esses caminhos conhecidos onde atrás de cada palavra tento desesperado encontrar um sentido, um código, uma senha qualquer que me permita esperar por um atalho onde não desvies tão súbito os olhos, onde teu dedo não roce tão passageiro no meu braço, onde te detenhas mais demorado sobre isso que sou (..) e de novo então me vens e me chegas e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque é assim que és e unicamente assim é que me queres e me utilizas todos os dias,

(...) mas quando desvio meu olho do teu, dentro de mim guardo sempre teu rosto e sei que por escolha ou fatalidade, não importa, estamos tão enredados que seria impossível recuar para não ir até o fim e o fundo disso que nunca vivi antes e talvez tenha inventado apenas para me distrair nesses dias onde aparentemente nada acontece e tenha inventado quem sabe em ti um brinquedo semelhante ao meu para que não passem tão desertas as manhãs e as tardes buscando motivos para os sustos e as insônias e as inúteis esperas ardentes e loucas invenções noturnas, e lentamente falas, e lentamente calo, e lentamente aceito, e lentamente quebro, e lentamente falho, e lentamente caio cada vez mais fundo e já não consigo voltar à tona porque a mão que me estendes ao invés de me emergir me afunda mais e mais enquanto dizes e contas e repetes essas histórias longas, essas histórias tristes, essas histórias loucas como esta que acabaria aqui, agora, assim, se outra vez não viesses e me cegasses e me afogasses nesse mar aberto que nós sabemos que não acaba nem assim nem agora nem aqui .....................................................
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Caio Fernando Abreu, Os dragões não conhecem o Paraíso.

Entrelaçado


Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela ?
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça ?
Que amor não se explica ?
É a vela que passa
Na noite que fica*.

Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo**.


Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?***

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* Fernando Pessoa
** Pablo Neruda
*** Mario Quintana

domingo, outubro 14, 2007


quatro elementos

Em cada ato a ser punido, 4 elementos sentados.
- O próprio ato;
- as circunstâncias em que é praticado;
- a intenção que acompanha o ato;
- a consciência do ato.

Não há mais ideologia, há amálgama de slogans e emoções. Logo que nascemos, o mundo começa a agir sobre nós, a nos modificar. Todo ser humano é moldado por uma sociedade que o cerca. Desde os primeiros anos, a língua que fala é proveniente do grupo social que convive. Ambos, língua e meio, ajudam a determinar o seu caráter, seu pensamento. Suas primeiras idéias são provenientes de outras. Só Kirilov tentou tudo para ser livre perfeito - até o suicídio. Ah, o misterioso poder do homem para desrespeitar as leis do seu próprio ser... Charles Kingsley já antevia: o homem se move, continuamente, entre a contradição e sua resolução, ser social e pessoa individual distinta. Já nasce percebido em panos, ocultando sua nudez em nome de valores sexuais, amorosos, estéticos, que lhe foram ensinados.

Vidraça

Quando menina, fui vigilante constante. Gênero inteligente, espécie bem-comportada. Um dia, limpei a vidraça e vi o mar. Parei de me encher o saco, e fui nadar. Uma vida em que se mergulha. Só consigo me libertar, quando compreendo tudo a partir de dentro: vou descobrindo detalhes, desvelando ressonância, meio-criança espantada, meia-asa inquieta, andando entre o fascínio e a angústia de ver o que parece como se fosse. Clarice tinha razão, Deus Meu, se a gente não se guarda, como nos roubam! Feito silêncio, eu sei levantar e cair, levantar e escorregar logo após. Mas as palavras ainda me ferem, quando não ditas. E por trás de tudo, sinto como se fosse eu, aquela sombra muda, logo ali, adiante de mim. Embora ele carrega amor, não sabe usar, às vezes seus olhos me lançam farpas, e é como se eu morresse de repente, demorando um mês. Entre o meu suspiro e olhos rasos d'água, ele inquieto, quase acreditando ser feliz, se não soubesse a mentira que vivia. Quando o via da vidraça, pensava que era preciso que eu viesse. Antes que fosse tarde demais, que eu fosse. Mesmo que ele não merecesse, ou que eu tivesse a chance de algo melhor. Enquanto caminhava em sua direção, meu coração começou a crer. E mesmo para uma descrente, houve um instante de desespero, quando eu senti que ele era. Era o ponto. Mesmo podendo não ser o final. E onde eu fui, quando até ele cheguei, não havia como retornar. Lá, o porto, o outro, plenamente vivendo e sentido dentro de mim. Olhava para as ondas, e sabia que alguma coisa eu sairia perdendo - eu, pessoa insegura, indecisa, sem leme, sem guia, sem farol, sem saber o que fazer comigo, daquilo que sobrou. Nem às vezes sinto esperança, do inesperado, Ele sonhado, e tão imprevisto.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim-mesmo
ser pensante, sentinte e solidária.
(...) Onde terei jogado fora
meu gosto e minha capacidade de escolher
minhas idiossincracias tão pessoais
tão minhas que no rosto se espelhavam
e cada gesto, cada olhar
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurada, sou tecido
sou gravada de forma universal.
Eu, etiqueta


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* Carlos Drummond de Andrade.
**Clarice Lispector

terça-feira, outubro 02, 2007


A ATITUDE FAZ TODA A DIFERENÇA

Li esse texto do Paulo Coelho, e voltei a reler, pelas três lições que ele retirou do seu dia 01/07. A primeira lida, é um daqueles textos que encerram uma grande moral, "ajude seu irmão", pare de andar rotineiramente aceitando o que não deve mais tolerar etc. As lições, ao contrário, são paradigma para alertar aqueles que "querem fazer qualquer coisa, bem feita". Pois é exatamente assim que se procede quando você se levanta em "defesa de alguma coisa que realmente importa".

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No dia 1 de julho, as 13:05 h., havia um homem de aproximadamente cinqüenta anos, deitado no calçadão de Copacabana. Eu passei por ele, lancei um rápido olhar, e continuei meu caminho em direção a uma barraca onde sempre costumo beber água de coco.Como carioca, já cruzei, centenas (milhares?) de vezes por homens, mulheres ou crianças deitadas no chão. Como alguém que costuma viajar, já vi a mesma cena em praticamente todos os países onde estive – da rica Suécia à miserável Romênia. Vi pessoas deitadas no chão em todas as estações do ano: no inverno cortante de Madrid, Nova York ou Paris, onde ficam perto do ar quente que sai das estações de metrô. No sol escaldante do Líbano, entre os edifícios destruídos por anos de guerra. Pessoas deitadas no chão – bêbadas, desabrigadas, cansadas – não constituem novidade na vida de ninguém. Tomei minha água de coco. Precisava voltar rápido, pois tinha uma entrevista com Juan Arias, do jornal espanhol El País. No meu caminho de volta, vi que o homem continuava ali, debaixo do sol – e todos que passavam agiam exatamente como eu: olhavam, e seguiam adiante. Acontece que - embora eu não soubesse disso - minha alma já estava cansada de ver esta mesma cena, tantas vezes. Quando tornei a passar por aquele homem, algo mais forte do que eu me fez ajoelhar, e tentar levantá-lo.Ele não reagia. Eu virei sua cabeça, e havia sangue perto de sua têmpora. E agora? Era um ferimento sério? Limpei sua pele com a minha camiseta: não parecia nada grave. Neste momento, o homem começou a murmurar qualquer coisa como “pede para eles não me baterem.” Bem, ele estava vivo; agora eu precisava tirá-lo do sol, e chamar a polícia. Eu parei o primeiro homem que passou, e pedi que me ajudasse a arrastá-lo até a sombra entre o calçadão e a areia. Ele estava de terno, pasta, embrulhos, mas deixou tudo de lado e veio me ajudar – sua alma também já devia estar cansada de ver aquela cena. Uma vez colocado o homem na sombra, fui andando em direção à minha casa – sabia que havia uma cabine de PM, e poderia pedir ajuda ali. Mas antes de chegar até lá, cruzei com dois soldados. - Tem um homem machucado, diante do numero tal – disse. – Coloquei-o na areia. Seria bom mandar uma ambulância. Os policiais disseram que iam tomar providências. Pronto, eu havia cumprido meu dever. Escoteiro, sempre alerta. A boa ação do dia! O problema agora estava em outras mãos, elas que se responsabilizassem. E o jornalista espanhol estaria chegando em minha casa em alguns minutos. Não tinha dado dez passos, e um estrangeiro me interrompeu. Falou em português confuso:- Eu já tinha avisado a polícia sobre o homem na calçada. Eles disseram que, desde que não seja um ladrão, não é problema deles. Eu não deixei que o homem terminasse de falar. Voltei até os guardas, convencido de que sabiam quem eu era, que escrevia em jornais, aparecia em televisão. Voltei com a falsa impressão de que o sucesso, em alguns momentos, ajuda a resolver muitas coisas. - O senhor é alguma autoridade? – perguntou um deles, notando que eu pedia ajuda de maneira mais incisiva. Não tinham idéia de quem eu fosse. - Não. Mas nós vamos resolver este problema agora. Eu estava mal vestido, camiseta manchada com o sangue do homem, bermudas cortadas de uma antiga calça jeans, suado. Eu era um homem comum, anônimo, sem qualquer autoridade além do meu cansaço de ver gente deitada no chão, durante dezenas de anos de minha vida, sem jamais ter feito absolutamente nada. E isso mudou tudo. Tem um momento, que você está além de qualquer bloqueio ou medo. Tem um momento em que seus olhos ficam diferentes, e as pessoas entendem que você está falando sério. Os guardas foram comigo, e chamaram a ambulância. Na volta para casa, recordei as três lições daquela caminhada.
a] todo mundo pode parar uma ação quando ela ainda é puro romantismo.
b] sempre há alguém para dizer:"agora que começaste, vá até o final".
c] todo mundo é autoridade, quando está absolutamente convencido do que faz.

segunda-feira, outubro 01, 2007


Sonhos são para vida inteira

Se sonhar com uma porta que está fechada você acabará conseguindo o que deseja, só que à custa de muito mais esforço. Sonhar com leite significa doença iminente. Espelho representa falso amigo; tesoura é ruptura no casamento ou relação; roda de ferro, má sorte chegando de todas as direções. Sonhar que se está moendo sal, resolverá o problema que a aflige, mas precisará de persistência para aencontrar a solução. Sonhar que lhe oferecem açúcar, cuidado, pois quem lhe oferece não é de confiança. Se um homem sonhar com macaco, seus negócios passarão por uma crise, que, se superada, trará resultados altamente positivos. A cacatua em sonhos é símbolo de sorte para os homens, anunciando o fim de uma longa briga de família. Para as mulheres, porém, anuncia o nascimento de uma menina. A águia, o veado e a serpente são os animais mais importantes guias em sonhos. Principalmente, em sonhos, ouça os significados das árvores:uma arvore de folhagem lustrosa significa que a saúde de um paciente vai melhorar; uma arvore abatida significa grande despesa iminente. Uma palmeira anuncia boa sorte, especialmente se você estiver subindo nela. Se estiver descendo com o fruto da palmeira na mão, você será altamente bem-sucedida. Uma bananeira lhe trará uma herança. Uma tamareira lhe avisa que você precisa renovar seu caminho espiritual. Uma figueira-de-bengala fará com que você se defronte com uma decisão moral complicada. Se vir uma espirradeira em sonho, esteja preparada para viver uma perda. Se você for tão for tão limitada quanto eu, não sabendo diferenciar uma árvore de outra, então macieiras e pinheiros, gingkos e caquizeiros, cerejeiras e oitis podem ser todas as mesmas árvores se não tiverem nome em plaquinhas ao lado, ou guias no sonho para ajudarem, não se desespere. Procure no poço da sua alma e daí ice o significado necessário, pois os significados de todos os sonhos estão, em última instância, dentro de você, e não nas palavras de livros ou textos explicativos. Por isso, ninguém pode ensinar alguém a arte de interpretação de sonhos. Mesmo que queira aprender desse modo, se algum dia tiver o dom necessário, verá que todas aulas foram inúteis. De resto, só a observação para a máxima atenção quando um homem com quem você sonhou aparecer em sua vida. Um fato desses é raríssimo. Só acontecerá com você em momentos que encerrem a possibilidade de uma grande mudança. Portanto, ouça bem. Siga esse homem, pois ou ele é um espírito guia ou um demônio. Tanto num caso como no outro, dê um jeito de fazê-lo falar com você. A primeira resposta que ele lhe der, guarde-a. Transformará sua vida. Mas o mais importante – NÃO O PERCA. Ele é o homem desta sua vida. Acredite nisso, e esteja preparada. Não, não quero que pareça magia barata, nem fantasia boba. Deixe-me dizer-lhe de outra maneira. Coisas lógicas não exigem fé, nem crença cega. Se alguém vem até você em sonhos, a importância dessa pessoa é, no mínimo, relevante. A ponto de você desfazer-se de seus preconceitos e regras estabelecidas, e recomeçar com ela algo importante. Porque ele é a única chance de conseguir de volta aquilo que perdeu. A sensação de “voltar para casa”.