terça-feira, outubro 23, 2007


PERSEVERAR.


A vida tem horror à mesmice.

Um amigo, cientista especialista em bambus, me emprestou um livro-arte maravilhoso sobre bambus. Aprendi que os bambus florescem. Espantei-me. Eu nunca vi um bambu florido. Bambus, pelo que eu pensava saber, se reproduzem assexuadamente: a planta mãe vai soltando brotos iguais a si mesma. Mas o livro me disse que em períodos aproximados de cem anos, uma mesma espécie de bambu floresce, no mundo inteiro. Depois da orgia sexual, da troca de gens, da ejaculação de sementes, morrem os bambús. Os novos nascerão das sementes. Não serão mais os mesmos que eram. Porque a semente é precisamente isso: a vida se recusando a ser a mesma; a vida sabendo que, para continuar viva, precisa "deixar de ser" o que era para "vir a ser" uma outra coisa.

Se não houver a mistura de gens, se a planta quiser ficar sempre a mesma, ela se degenera. É preciso deixar de ser o mesmo e se transformar em outro. Vale para as plantas a sabedoria evangélica: "Quem quiser salvar a sua vida perde-la-á". Quem permanecer o mesmo, morrerá. Ou se transformará numa pedra. Na procriação existe sempre um pouco de morte. "Morre e transforma-te!", dizia Goethe. "Somente onde há sepulturas há também ressurreições", dizia Nietzsche. "Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só. Mas se morrer dá muito fruto", dizia Jesus.
"Casca vazia. A cigarra cantou-se toda". Haikai, se não me engano, de Bachô.

Antes da casca vazia a cigarra cantava canções subterrâneas - a vida acontecia nas profundezas da terra. Mas, de repente, a vida tornou-se outra. A cigarra subterrânea começou a sonhar sonhos de ar livre e vôos. Saiu da terra. Sua casca não era mais capaz de suportar a vida que crescia dentro dela. Arrebentou. E dela surgiu um outro ser, alado, pneumático. Nós, seres humanos, somos como as cigarras. Só que nossas cascas são feitas com palavras. Crescendo a vida, as cascas verbais se transformam em prisões. Têm de ser abandonadas, para que a vida continue. "A serpente que não pode livrar-se de sua pele morre. Assim são os espíritos que são impedidos de mudar suas opiniões. Eles cessam de ser espírito": aforismo de Nietzsche.

O ecumenismo foi uma florescência de bambús: o desejo de fazer trocas, depois de séculos, o desejo de transformar-se em semente, de cair na terra, de deixar de ser o que era, para ser outra coisa. Possibilidade de "nascer de novo": o velho voltando a ser criança...

Rubem Alves.

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Colorir é uma maneira de deixar o cinza de antes definitivamente para trás. E "a verdadeira medida de um homem não é como ele se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas como ele se mantém em tempos de controvérsia e desafio", já dizia Martin Luther King.

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