sexta-feira, julho 20, 2007


ANTÍGONA.

Antígona é um sonho. Pesquisei tanto sobre esse mito, quis tanto fazer essa dissertação para a final da pós em Psicologia Forense. "Leis ou Valores Morais", "Camelos são aceitos pela sociedade, não podem virar alvo de cacetetes". Aí tudo naufragou, retrocedi, voltei atrás. Mais uma desistência, capitão. Essa pós, não, não quero mais não. Quero o Mestrado.

Houve a Antígona antiga, a de Sófocles e a de Eurípides, figuras antes de tudo dramáticas de um mundo para sempre desaparecido. E há as Antígonas de nosso tempo, que habitam nossos palcos nacionais e internacionais, após trinta séculos de silêncio. Para os gregos que a descobriram em Atenas em 442 a.C., Antígona deve ter surgido como uma figura marcada pelo destino familiar e predestinada a uma morte trágica.

Mas hoje, para nós, o que diz, murmura ou clama a personagem de Antígona? Ela é, na maioria das vezes, representada como uma revoltada que se recusa a obedecer ao édito de Creonte, que proibiu qualquer rito fúnebre para o cadáver de Polinice, uma verdadeira pasionaria diante da ditadura de um poder injusto e criminoso. Na realidade, o que aparece mais claramente, mais indiscutivelmente na história de Antígona, é que nada a predispunha a se erguer dessa maneira contra o poder e a autoridade de seu tio Creonte. Noiva de Hêmon, o filho de Creonte, estava destinada a casar-se e dedicar-se à sua prole.

Ediouro.

Mas a guerra, os homens e talvez os deuses decidiram diferente. Os dois irmãos de Antígona se enfrentam e morrem diante das muralhas da cidade. A máquina infernal é, então, engatada: ordem sacrílega de Creonte relativa ao cadáver de Polinice e recusa de Antígona a dobrar-se a ela, mesmo que ao preço de sua própria vida. Porque ela diz "não" de maneira espontânea, firme, calma, mas resoluta. Com uma certeza inquebrantável. Ao pronunciar esse "não", ela sabe o que vai perder: todo o seu futuro de mulher, mãe e esposa. Mas nada poderá detê-la, pois só o que interessa então é o combate contra a injustiça. Insisto neste fato: Antígona não é uma insubordinada, uma revoltada de nascença, muito menos uma militante dos direitos humanos.

Ela, simplesmente, diz "não", pois submeter-se seria se desobrigar do que deve à memória do irmão, e também à de todos os outros mortos que corriam o risco de ter o mesmo destino. De seu "não" ela não faz de modo algum um princípio, mas um clamor, um clamor para manter-se fiel a si mesma e à sua consciência. Sim, sua consciência. A palavra não figura na obra de Sófocles, mas está o tempo todo presente no diálogo crucial que ela trava com Creonte. No que ela é a perfeita, premonitória ilustração da frase de Albert Einstein que eu, quando estudante, mantive durante muito tempo pregada na parede de meu quarto, "Não faça nada contra a sua consciência, mesmo que o Estado lhe peça".

É por isso, penso, que no decorrer dos séculos outras Antígonas surgiram. Seu clamor tornou-se um brado universal que não pertence mais a um clã, uma família, uma cidade ou uma pátria determinados. 0 brado de todos aqueles, de todas aquelas que não se resignam diante da arbitrariedade, da violência, da cegueira dos homens e do poder. Eis porque, há algum tempo, quando da montagem da Antífona de Bertolt Brecht em que o coro era interpretado - com letras e cantos - por um grupo musical argentino, o Cuarteto Cedrón, eu pude apresentar aquele encontro entre a Grécia, a Alemanha e a Argentina como parte - e veremos por quê - da perfeita e pura tradição da mensagem, mais do que nunca viva, de Antígona.

Aqui, Antígona canta. Ela vem até nós com seus lamentos, gritos, lágrimas salmodiadas, indo muito além do verbo e da tragédia para atingir a graça e a gravidade do canto. Os coros das tragédias antigas eram interpretados em uníssono ou em oitavas, pois a música coral antiga ignorava a polifonia. Aqui, os coros de Antífona são também cantados, mas, grande e bela inovação, os cidadãos de Tebas que os compõem, aqueles tebanos lançados ao fundo dos dramas que os ultrapassam, cantam sobre melodias polifónicas concebidas pelo Cuarteto Cedrón, vindo do outro lado do Atlântico.

E a primeira vez que dois continentes e dois séculos tão distantes um do outro - a Grécia de Sófocles e a Argentina de Juan Cedrón - se encontram e se aliam para formar o coro de Antígona. Aliança inesperada mas benéfica, pois nos lamentos, cóleras e pesares de Antígona, naqueles gritos, naqueles cantos do mundo antigo, ela insufla lufadas de ar do novo mundo. Percebemos, então, que esta obra Antífona mesmo sendo de fonte puramente grega, pode ter estuários infinitos e se misturar sem atrito e sem inconveniente algum com as contribuições de uma cultura moderna.

Ocanto de vitória que abre a tragédia, o hino ao homem que lhe dá continuidade, o hino ao amor que a ele se segue, os pungentes lamentos de Antígona condenada a morrer sem nada ter conhecido nem da vida nem do amor, e o sombrio inventário das vítimas da loucura e da tirania dos reis, aquela firme, lúcida, impiedosa denúncia da violência e da guerra se reencontram aqui, fortemente, intensamente trazidas pelas vozes solidárias do Cuarteto Cedrón.

Portanto, cantos de Antígona e não canções. Não confundamos o que vem do coração com o que vem dos lábios. O que se ouve claramente aqui é a voz de uma mulher, ou melhor, de uma adolescente, a primeira a ter coragem de dizer "não" ao sacrilégio e à tirania, e as de intérpretes contemporâneos vindos de um país em que, há nem tanto tempo assim, outras irmãs chamadas de as "loucas de Maio" também reclamavam o corpo do irmão desaparecido. Estranha e fecunda coincidência da História? Em todo caso, desse encontro carregado de sentido nasceram estas núpcias suntuosas e musicais entre dois continentes e duas épocas.

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