sexta-feira, julho 20, 2007


QUANDO TERMINEI, foi para o jornal.

Embora existam controvérsias, a história toda pode ser iniciada por Diodoro o historiador, que revela que, há muito tempo, existia uma Tribo das Górgonas, um povo belicoso, semelhante às amazonas, que habitavam um local nos confins do país dos atlantes. Este povo havia sido conquistado pelas amazonas, que obrigaram a Rainha Mirina a atacar as Górgonas, incômodas vizinhas. As amazonas venceram a batalha, e as Górgonas, apesar de perderem, logo se recompuseram, e mantiveram seus costumes até serem finalmente derrotadas - primeiro por Perseu, que matou sua rainha, e em seguida por Hércules.

Também nas elucubrações de grandes escritores está contida a história de que havia no Universo uma única mortal das 3 Górgonas, Medusa, que havia trocado sua imortalidade pela beleza, numa troca de favores com Zeus. Por conta disso, vivia Medusa a se vangloriar de sua divina beleza, dizendo que até as deusas a invejavam, pelo seu rosto divino resplandescente de beleza, e cabelos que caiam encaracolados até quase tocarem o chão.

Athena, que tinha mãos calejadas de tanto carregar lança e escudo, os cabelos cortados rente quase como o de um homem, e a ausência de seios - uma imagem que evocava um mostro parecido com Esteno e Euríale, irmãs imortais de Medusa, passeando por sobre a terra ouviu uma destas provocações de Medusa. Tomada de Violenta Fúria, transformou-a num monstro, que ficaria famoso sua feiúra. Medusa continuava linda, mas sua cabeleira eram agora peçonhentas serpentes, quem sabe símbolo da Inveja de Athena de sua estonteante beleza adquirida? Com isso causava asco e temeridade entre todos...

Por outra versão da história, mais tenebrosa, Medusa era feia e imortal tal qual suas duas irmãs Esteno e Euríale. Possuia cabelos desgrenhados, grandes presas semelhantes aos javalis, mãos de bronze e asas de ouro, que permitiam que voassem. Medusa não se conformava por ser daquela forma, afinal ela era como suas irmãs com poderes anteriores aos deuses olímpicos, pertenciam aos poderes ctônicos que comandavam o planeta antes da subida dos olímpicos ao trono dos deuses. Foi por isto que ela consegui efetuar a Troca da sua imortalidade pela beleza, com Zeus.

Com sua Beleza, Medusa conseguiu chamar a atenção de deuses e homens, e imaginou que, com Possêidon, irmão de Zeus e deus dos mares, talvez fosse possível recuperar sua imortalidade e manter a beleza. Passeando pela beira do morro com vista para o mar, onde no alto existia um templo dedicado Athena, Medusa, provocou esta Deusa, demonstrando toda a beleza que continha fora de si.

Imagine você, de uma hora pra outra linda, talvez também saísse correndo pelo país esnobando a todos com tal beleza. E quem sabe não foi esse o sentimento dessa antiga força ctônica, perante aos imortais? Forças que, geralmente dotadas de feiura, com suas formas ligadas a natureza, sempre ficavam aquem dos olímpicos, perfeitos fisicamente e divinamente belos.

Quando chegou ao templo, no alto do morro, estava quente e o sol forte, e resolveu se sentar um bocadinho. Foi seu erro. Possêidon, que vinha acompanhado o andar de Medusa, já há algum tempo, quando a viu sentada, elevou-se como uma onda e caiu sobre Medusa, que, quando percebeu, estava envolvida pelos fortes braços do senhor dos cavalos. Naquele momento de volúpia, se entregou ao prazer.

Como todo coito divino é demorado, passaram eles mais de um dia enlaçados, no interior do Templo da Deusa Athena, A Virgem, que, quando soube do ocorrido, não se voltou contra o seu tio crônica, mas sim contra Medusa, e mais uma vez esta deusa da sabedoria lançou aqueles seus julgamentos machistas: deixou toda a culpa para a mulher, acreditando que o que ocorreu era fruto da insinuação dos cabelos, que voam ao vento. Assim, Transformou os cabelos de Medusa em serpentes, e para que ela jamais tivesse outro amante, ficou a maldição de que, quem olhasse em seus olhos, seria transformado em pedra.

O resto creio que todos sabem: Perseu filho de Zeus e Danae, com o auxilio de Athena e Hermes, mataram a medusa, cortando sua cabeça. Usaram para isso um espelho, assim evitando o olhar direto em seus olhos. E depois a cabeça, que não perdeu o poder de transformar quem a olhasse em pedra, foi colocada no escudo de Athena, que, onde dizem, continua até os dias de hoje. E do pescoço de Medusa, saiu por ele como um parto as avessas, Pegasus o cavalo voador, filho dela e de Possêidon.


Alguns ainda falam e estudam este poder de transformar aos outros em pedra, como Jean Pierre Vernant, no Livro, A Morte nos Olhos, que afirma:

" A face de Gorgó é uma máscara; mas em vez de ser usada para que seu portador imite o deus, esta figura produz o efeito de máscara simplesmente olhando-nos nos olhos. Como se esta máscara só tivesse deixado nosso rosto, só se tivesse separado de nós para se fixar à nossa frente, como nossa sombra ou nosso reflexo, sem que nos possamos livrar dela. É nosso olhar que se encontra preso à máscara. A face de Gorgó é o Outro, nosso duplo, o Estranho, em reciprocidade com nosso rosto como uma imagem no espelho (esse espelho em que os gregos só podiam ver-se de frente e sob a forma de uma simples cabeça), mas uma imagem que seria ao mesmo tempo menos e mais que nós mesmos, simples reflexo e realidade do além, uma imagem que se apoderaria de nós, pois em vez de nos devolver apenas a aparência de nosso próprio rosto, de refratar nosso olhar, representaria, em sua careta, o horror terrificante de uma alteridade radical, com a qual por nossa vez nos identificaremos, transformando-nos em pedra."
posted by Anna at 5:27 DU

Cassandra...
Pouco lembramos de Cassandra, a profetisa desacreditada de Tróia, quando buscamos nossos mitos pessoais. Preferimos sempre deusas fortes e poderosas, para criarmos nossa identificação individual como mulheres independentes e contemporâneas.

Os arquétipos, que são as poderosas forças interiores, ao serem personificados, enquadram-se nos mitos de Afrodite, Ártemis, Atena. Helena, Circe, Medéia e mesmo Cassandra, que igualmente são mitos ricos, cortejadas por deuses e heróis e facilmente identificados como influentes em nosso cotidiano, são ainda relevados a segundo plano por oferecerem imagens dúbias e estereotipadas.

Cassandra, que dentro de nós nunca se cala, pouco se importando se é escutada ou não, modela comportamentos e emoções, e pode representar toda a geração feminina que foi à luta para ser ouvida. Ela tem a consciência de seu dom, sabe que tem verdades para contar, mas ainda hoje encontra oposição em muitas culturas. Cassandra, ao ser imaginada e invocada, pode salvar a muitos do medo de dizer nossas verdades, do pavor de mostrar o que sentimos e o que nos corrói por dentro. Confiando em nossa Cassandra interior, aprendemos a não mais engolir as palavras, os sentimentos e as emoções, e a deixarmos fluir os nossos dons femininos, sem censuras e sem medo. Libertamos nossa heroína que jazia calada.

O mito de Cassandra começa com Príamo e Hécuba, reis de Tróia, que tiveram 19 filhos. Entre os mais moços, estavam os gêmeos Cassandra e Hélenos. Durante uma festa no templo, as crianças adormeceram num canto, enquanto os pais, que haviam bebido muito vinho, esqueceram-se delas e foram embora. Hécuba, retornando ao templo, encontrou as serpentes sagradas lambendo as orelhas dos gêmeos. Gritou, aterrorizada, e imediatamente as serpentes desapareceram em meio a uma pilha de louros. Desse dia em diante, Cassandra e Hélenos passaram a possuir o dom da profecia.

Uma outra história conta que um dia Cassandra adormeceu no templo, e Apolo, aparecendo, prometeu-lhe o dom da profecia em troca de seu amor. Cassandra aceitou o dom, mas depois não cumpriu o trato. Ofendido, Apolo pediu-lhe um beijo; ela consentiu. Ele cuspiu em sua boca, assegurando-se de que jamais acreditariam em suas profecias: então também abriu a boca para revelar-nos nossos destinos futuros, Por vontade de Apolo, Cassandra jamais foi acreditada pelos troianos. Ao final da guerra de Tróia, derrotados, Cassandra foi levada por Agamenon para Argos. Ali, Clitemnestra, a rainha-esposa de Agamenon, conspirava com Egisto para matar os dois. Agamenon entrou em seu palácio enquanto Cassandra permanecia fora, em transe profético, gritando que sentia cheiro de sangue e que a maldição de Tietes pesava nos salões. Agamenon foi morto com o duplo machado por Egisto, e, em seguida, correndo, Clitemnestra saiu, e, com a mesma arma, matou Cassandra.

A mitologia é uma das linguagens que podem evocar as respostas que a essência de uma mulher anseia, movendo-nos a transformações e nos conduzindo na direção de realizações concretas que se revelam em autoconhecimento, auto-estima e amor próprio. Revestir nosso templo-corpo do sagrado que emana interiormente revela na face o brilho e a força da deusa que habita em nós. Não precisamos de verdades não examinadas, e sim de um mito vivo, de uma estrutura de valor que oriente as energias da alma de forma condizente com a nossa natureza. Cassandra, em seus arrebatamentos que enfatizam-se em gestos, enunciava um sentido definido para os acontecimentos que lhe eram contemporâneos, acontecimentos sombrios, mas ninguém lhe dava crédito. O pai, Príamo, encarcerou-a, e, embora se mantivesse informado sobre os vaticínios, nunca agia em consonância com o que ouvia. O deus Apolo, a quem ela negou o corpo, retirou-lhe a credibilidade, o dom da persuasão. Cassandra foi aprisionada pelo pai numa torre, para evitar escândalo pelo conteúdo de suas visões. As visões que a dominavam não tinham mais qualquer relação com as profecias rituais dos oráculos; ela via o futuro porque possuía a coragem de ver a verdadeira situação do presente.

Cientistas e historiadores têm tentado explicar a caça às bruxas através de vários fatores, e uma das teorias mais contundentes na Idade Média era de que "as mulheres histéricas eram as bruxas, videntes loucas". Por trás dessas formulações há uma preconceituosa e indevida aplicação de um conceito do século 19 aos séculos precedentes, onde a loucura era encarada, inquestionavelmente, como enviada pelos deuses ou por um deus, e o louco furioso vinculado ao possuído.

O mundo feminino aparece refletido no mito de Cassandra, inspirada por Apolo, emitindo vatícinios possuída por esse deus, que ocasionava agitação da mente e inspiração divina. Esse sagrado e divino dom aparece como o extraordinário, face a uma consciência alterada, alargada, onde o indivíduo vê, ouve e vivencia aquilo que para outros não existe, entrando em contato direto com seu Eu Superior, comunicando-se com os deuses e os espíritos.

Uma antiga denominação para um estado da alma excepcional é entheos – o deus dentro de si. Um deus arrebatando o ser humano, transportando-o e mantendo-o em estado possesso durante o fenômeno da mania, devaneio, loucura. A histeria, tendo como sintoma principal a falta de controle sobre atos e emoções, o exagero do efeito de impressões sensoriais, pode ser facilmente associada às manifestações do divino no ser humano. A visão profética com acesso de loucura, possessão, era considerada defeito feminino, pois os homens eram razão e ciência. Cassandra possuía todas as características desse entusiasmo delirante profético, como das bacantes de Eurípedes. Era uma bacante em delírio... O dom profético foi definido por Platão como "a primeira das loucuras divinas". A diferença entre esta e a loucura humana é que a última é produzida pela doença. A mania profética engloba, segundo Platão, o delirante e o divinatório, levando à conclusão de que o "delírio é uma coisa mais bela do que o bom senso". A profecia não se opõe à verdade ou à razão, mas contém um saber que, lançando uma luz na escuridão, desfaz as dúvidas. Um saber que, portanto, implica o conhecimento acerca do futuro do mundo e dos homens: "Da desrazão à razão, há passagem e vaivéns, não exclusão".

Cassandra não foi possuída pelo deus, é justamente isso que ela recusou; não cedeu seu corpo e a autonomia de suas palavras e atos: ela própria profetizava. Não precisava negociar com o deus um dom que já possuía. Apolo venceu a Serpente, aprisionou-a no subterrâneo, e se apossou de Delfos (Ventre da criação), antigo oráculo de Géia. As pitonisas tornaram-se suas sacerdotisas, mas o que diziam era interpretado pelos sacerdotes. Os sacerdotes de Apolo dirigiam suas energias para a conquista dos oráculos, porque eles eram o principal meio para controlar a ação e a opinião pública, e usaram o oráculo par a criar novas leis.

O mais importante ato legislativo de Apolo aparece na tragédia clássica de Ésquilo, Eumenides (II.658-63). Apolo absolve Orestes do crime de matricídio, pelo qual estava sendo perseguido pelas Fúrias, e declara: "Não é a mãe a geratriz daquilo que se diz por ela gerado, mas é somente a nutriz do feto nela recém-semeado. Genitor é aquele que ejeta sêmen... Pode-se ser um pai mesmo sem mãe". Em outras versões, quem dá o voto final que absolve Orestes é Athena, o conhecido Voto de Minerva, pois Athena, nascida da Cabeça de Zeus, não tinha mãe. O decreto faz desaparecer não só a antiga matrilineagem, mas também qualquer possibilidade do feminino criativo. O decreto de descrédito que Apolo concedeu a Cassandra faz parte desse mesmo quadro.

Na raiz da cultura ocidental, de inspiração grega, vemos, portanto, o encarceramento e o descrédito da palavra da mulher, tanto pelo pai e por um deus. Cassandra, que não cedeu seu poder, acabou como despojo da guerra entre os homens, uma escrava. Mas como ainda conservava seu poder, proferiu as palavras, criou o desfecho de sua história, um triunfo de auto-afirmação, pois seu nome permaneceu na legenda épica da memória cultural, individualizado, como uma princesa troiana que previa corretamente os acontecimentos, mas que não era acreditada. O tempo provou o seu valor e o seu dom.

Por outra das vertentes formativas de nossa cultura, como a judaica, vem idéia semelhante, miticamente descrita pela história de Lilith, a primeira mulher de Adão. Lilith foi castigada e banida por ter afirmado sua sexualidade, por ter ousado criar. A mensagem que Lilith encarna é que se os papéis que a sociedade cultua, estereótipos de uma vida de submissão feminina, de pureza contemplativa, de uma vida de silêncio, sem pena nem história, forem experienciados sofrerão a marginalização da sociedade. Uma vida de rebelião para uma mulher de ação significativa é uma vida que precisa ser silenciada, uma vida cuja pena monstruosa conta uma história terrível.

Os mitos atestam em suas matrizes a longa tradição misógina que permeia a cultura ocidental, apesar de todas as suas transformações sofridas desde a antigüidade clássica até a modernidade. A natureza as fez feiticeiras. É o gênio próprio da mulher e de seu temperamento. A mulher nasce Fada. Pelo retorno regular da exaltação, ela é Sibila. Pelo amor, é mágica. Por sua fineza, sua malícia, ela é feiticeira e decide o destino (ou pelo menos o minimiza), e engana os males. "A Sibila prediz o destino. A feiticeira o realiza. (...) Ela evoca, conjura, e faz o destino. Ela não é a antiga Cassandra, que via, deplorava, mas esperava, impotente, pelo Futuro."1

A verdade é muitas vezes vaga quando a procuramos diretamente; mas ela sempre se revela de modo implacável em nossas vidas, em nossos sonhos e nas histórias que contamos uns aos outros. Ao revelar o que vemos e ouvimos devemos encontrar tanto a coragem de sermos autênticos com nós e com outros quanto um modo de conviver com o efeito que nossas atitudes e palavras provocarão nos outros, mesmo quando não há intenção oculta ou culpa velada. No delírio de Cassandra, muitas de nós, mulheres, nos perdemos em entusiasmos delirantes e paixões arrebatadoras. Essa atividade sucessiva que é proferir e falar sem jamais ser escutada pode levar a um estado de impaciência e inquietação, que fatalmente dirige-se à loucura histérica ou à insegurança terrível de não saber quem somos.

A questão não é a falta do mito na vida, porém o reconhecimento de qual mito está se vivenciando, pois somos sempre guiados por imagens, consciente ou inconscientemente. O caminho da individuação e do conhecimento de si é a alternativa viável, a imposição evolutiva de cada um de nós, de nos tornarmos a nós mesmos o mais completamente que formos capazes, dentro dos limites que nos são impostos pela nossa sina. Separar quem somos daquilo que adquirimos.

Compreendendo o mito que estamos vivendo somos capazes de perceber a realidade que nos cerca, o que é realmente verdadeiro naquele momento e qual a fantasia associada ao mito? Como poderíamos ser capazes de esquecer os antigos mitos que estão no início de todos os povos? Os mitos a respeito de dragões que no último momento se transformam em princesas. Talvez todos os dragões da nossa vida sejam princesas que estão esperando para nos ver uma vez belos e bravos. Talvez tudo que existe de terrível seja, bem no fundo, algo indefeso que precisa da nossa ajuda. Os dragões representam tudo o que tememos e que ameaça nos engolir; partes negligenciadas de nós mesmos que podem demonstrar imenso valor. Quando levados a sério, e até mesmo amados por nós, esses dragões responderão, fornecendo enorme energia e grande significado para a jornada.

No filme Matrix, o personagem agente Smith, em uma cena, diz que eles criaram um mundo perfeito, sem dor, sem sofrimento, sem pobreza, só beleza, mas os seres humanos não conseguiram sobreviver àquilo; não procriavam mais, não se desenvolviam ali. Foi necessário reinventar outro e trazer o sofrimento novamente, porque parece ser essencial à alma do humano. No mito e livros sobre Cassandra, a personagem também ousa falar a mesma coisa: "(...) a única possibilidade de salvação para as mulheres era acordar de sua inconsciência e começar a vivenciar frustrações, descontentamentos, sofrer angústias etc. Este seria o preço de poder protagonizar a ação. Sem a possibilidade de viver todos esses sentimentos, o único fim possível seria a loucura e deterioração moral. Não é a luta pelo dinheiro, nem mesmo o trabalho, mas a restauração da dor. Devolvam-nos nosso sofrimento. Nós necessitamos ter em nossos corações sofrimento em vez de indiferença. Para o nada vem o nada, mas para o sofrimento poderá vir a cura. É muito melhor a dor do que a paralisia. Milhares podem lutar e acabar por se afogarem num barril. Uma descobre um novo mundo. Mas é melhor, dez vezes melhor, morrer na onda procurando este novo mundo do que ficar parada, à margem...." 2

Esse é o insight original: Cassandra exige que seja devolvida a parte feminina do sofrimento. Sofrimento entendido não no sentido pessoal, mas a partir do contato com as realidades do mundo, como a miséria, o crime, a pobreza. Ao final do livro, Cassandra-personagem acaba morrendo aos 30 anos, esquecida, acabada, paralisada. Enquanto pôde, lutou para não deixar que seu intelecto e sua energia fossem destruídos por trabalhos insignificantes. Também lutou por uma instituição onde poderia ensinar às mulheres algum ofício. Mas a sociedade a encara como louca, e ela morre completamente desconsiderada. Tal e qual o mito. Victor Hugo já disse que "nós vemos sempre apenas um lado das coisas. O outro mergulha na noite de um mistério amedrontador".

Mulheres-Cassandras, condenadas a um vaticínio sangrento, cientes de seu fim, enfrentam jornadas como cativeiras, e terminam aniquiladas por mulheres, ciumentas da entrega e plenitude que vivem por e per si. Toda mulher quer fugir de sua máscara-cassandra por desejar o domínio e a persuasão sobre as coisas e seres. Quem tem medo de alguém que fala e grita, em êxtase, delirantemente vivendo cada cena que vê no infinito? Tênue é a linha que separa a loucura de seus vatícinios, pois na solidão do seu ser vive encerrada em sua torre de marfim. Confinada ao seu mundo, molda-se silenciosamente, sem ajuda, sem amigos. Ninguém compreende que não deseja aquele final, apenas vislumbra-o. Por que não tentam evitá-lo? Ora, Cassandras, todos preferem não ouvir aquilo que não querem que aconteça. Aqueles que saem em busca de vaticínios esperam por sucesso, dinheiro e amor; jamais por morte e terror. Poucos aguentam verdades, sem véus e sem máscaras... Triste fim de Cassandra-mulher, destinada a ser e ver sem poder agir ou mudar, em razão do seu descrédito. A infelicidade que jaz em seus olhos é reflexo do mundo solitário em que vive, que não lhe esconde segredos.

Ou se vive plenamente essa face, ou guardamo-la na cela, fechada a sete chaves, na escuridão de nosso ser. Abrir a porta que descerra Cassandra é ter contato com uma parte de si desacreditada. É delirar, insana, extasiada, angustiada e incompreendida. Muitas vezes é caminhar rumo à destruição. Tudo o que pedem essas mulheres-cassandras é que as ouçam, sem julgamentos ou críticas. Entendam e respeitem seu mundo, suas tempestades e desvarios. Mas, tal e qual seu pai no mito, quando desandam a falar e se expor, são excluídas do convívio, e se continuam à força a prever algo, tecer considerações ou opinar discordantemente, loucas desvairadas se tornam, motivo de chacota e risos. Ah, Cassandra, que asneiras você tanto profere!

Ninguém percebe sua dor ao ver o amor que cativou-a caminhando em direção à morte. Assiste a tudo sem poder agir, desacreditada como sempre. Infelizmente já nasceu dividida, e, pelo menos no mito, seu final não é encontro, mas aniquilamento sanguinolento. Morta pelo feminino, que execra sua feminilidade, tem ódio pelo amor que conquistou e pela força que detém, pois, mesmo ante a visões tresloucadas, possuída pelos deuses, enlouquecida de pavor, continua de pé, firme como uma guerreira, sem cair... Espera pelo final sem fugir, não há temor, apenas tristeza. Lágrimas devem correr por seus olhos quando se volta e só recebe descrédito total. Não empreende fuga, apenas sente e vivencia o momento presente, a dor de ver aquilo que ninguém enxerga; dor que paralisa ante olhares que a julgam louca e desajustada.

Ao optar por caminhar na jornada reconhecendo seu dom de profecia, Mulheres-Cassandras podem permanecer mudas, caladas, encerradas na prisão recém-construída, vindo a se tornar aos poucos o que alguns chamam de mulheres histéricas. Ou podem escolher proferirem suas visões, cientes da falta de atenção e persuasão que vão encontrar, mas totalmente livres para falar ao vento o que colhe seu coração...

"Podia dizer ao mundo: tomaste o meu dom! A glória dominou-a por um momento. Mas que tinha ela dado? Uma nuvem que no horizonte se dissolvia nas outras nuvens. Era na dádiva que residia o triunfo. E o triunfo desvanecia-se. O seu dom não significava nada. Ah, se eles tivessem compreendido o que ela queria dizer... " 3

(1) A Feiticeira, Jules Michelet, Nova Fronteira, 1992.

(2) Cassandra, Christa Wolf, Estação Liberdade, 1999.

(3) Fala de Cassandra.

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