sexta-feira, julho 20, 2007


CIRCE.

Feitiçaria e Sedução: Circe.
Circe, figura legendária da mitologia grega, é muitas vezes retratada como filha de Hélio, Deus-Sol, e da ninfa Pérsia; em outros relatos aparece como filha do Dia e da Noite, ou do Sol (Hélio) e da Lua. Em todas elas temos uma figura majestosa, feiticeira ciente de seus poderes, grandiosa mulher reinando em uma ilha, tendo aos seus pés muitos animais. Exerce um grande fascínio sobre quem a lê, talvez porque reuna em si prazeres e embustes, não revelando a sua identidade a ninguém.

Dizem que, por ter envenenado seu marido, o rei dos sármatas, que habitava o Cáucaso, foi obrigada a exilar-se na Ilha de Ea, localizada no litoral oeste da Itália. O nome da ilha, Ea, traduz-se como "prantear", e dela emanava uma luz tênue e fúnebre. Essa luz identificava Circe como a “Deusa da Morte”, pois, ali, os que aportavam jamais retornavam. Era também associada aos vôos mortais dos falcões, e assim como estes, Circe circundava suas vítimas para depois enfeitiçá-las. O grito do falcão é "circ-circ", e é considerado a canção mágica desta ambígua bruxa, que controla tanto a criação quanto a dissolução. Sua identificação com os pássaros é importante, pois eles têm a capacidade de viajar livremente entre os reinos do céu e da terra, possuidores dos segredos mais ocultos, mensageiros angélicos e portadores do espírito e da alma, portanto, alusões aos seus poderosos encantos e proezas. Cada homem que vinha, por mar, naufragar em sua ilha, Circe, depois de o alimentar e conhecer, rodeando-o de mimos e ternura, transformava-o em animal. "A besta que jazia oculta no ser masculino", ou a alusão a tudo o que aquele homem fora e que algum dia fez.

Já outros mitólogos insistem na versão de que todos eram enfeitiçados e transmutados em porcos, o que seria "A verdadeira essência humana". O que temos é que, nessa transformação de homens em animais, não havia sentimentos. Para Circe não havia amor nem expectativas, porque todos ela conseguia; quando se quer alguém, cai-se em seu poder. Em um mundo sem amor qual é a finalidade de qualquer conquista? Bonita e convencida, dotada de poderes ocultos e mágicos, jamais alguém a havia desafiado: nenhum mortal confrontava-a, e assim essa bruxa pairava sempre acima como uma nuvem negra...

Porém, falsa presunção dessa encantadora moça: a rocha sólida e a tênue facilmente podem mudar de lugar, e tudo o que fazemos vemos outro fazer. Foi assim que sua sorte e magia sopraram outros ventos e o herói de muitas aventuras, Odisseus ou Ulisses*, e 23 membros de sua tripulação desesperada desembarcaram na Ilha Ea, clamando por água e alimento. O único que retorna conta a Ulisses o que o canto doce e belo de Circe havia feito aos demais: conduzindo-os como por encanto, ao interior de seu castelo, onde lhes serviram um banquete e foram ofertados grandes taças de vinho. Depois disso, todos foram transformados em animais, que logo se juntaram a muitos que ali viviam - lobos, leões, porcos - todos homens metamorfoseados pela arte encantatória de Circe.

"Amar é ser transformado, ou transformar", já contava o mito de Dafne em sua metamorfose. Circe usava de sua magia para desviar o curso de muitas vidas, usando práticas encantatórias, tentando domar homens com sortilégios e conquistar amor com feitiços. Sabia como tirar proveito da luxúria que queimava esses homens e, fracos demais, arrastava-os até seu castelo. Quem ousaria afrontar esse mito, essa lenda cruel, que diziam possuir atos mágicos indefensáveis? Há quem fugisse dela a toda pressa, mas não Ulisses. Ao tomar conhecimento do que tal criatura havia feito a seus homens e contando com a ajuda dos deuses, dirigiu-se à Circe e seguiu à risca os conselhos de Hermes, conseguindo assim resgatar sua tripulação e desfazer o encantamento que os tinha convertido em animais. Porém, nesse episódio é Circe quem sai chamuscada, pois acaba se apaixonando por Odisseus, detendo-o com ela por um ano, até o momento em que o herói resolve novamente empreender seu retorno à casa, saudoso de Penélope e seu filho. A magia, astúcia, ternura ou amor devotado de Circe, Grande Feiticeira, não havia libertado seu coração do amor que sentia por sua mulher e família.

Podemos começar aqui, a tecer metaforicamente, a influência que exerce sobre os homens os encantos de uma mulher. Toda mulher traz dentro de si uma feiticeira, poder que seduz e arrasta a vítima a seu altar para ser devorada. Circe era um demônio sedutor ou apenas uma mulher ciente de seu poder de sedução? Não há julgamentos quando falamos em sentimentos, mas este mito mostra que quando uma mulher resolve usar sua força interior, mágica e inesgotável, pode enlouquecer a cabeça de um homem, principalmente se está determinada a usar todo o seu potencial sexual.

Inconscientemente, temos homens transmutados em animais, revelados de acordo com a sua natureza: ora belos cachorrinhos atados à coleira; grandes leões ladeando sua fêmea; macacos tentando atrair a atenção da feiticeira... Os homens movidos tão somente por fortes desejos sexuais nunca estarão livres de serem explorados por mulheres que somente buscam satisfações financeiras, pois estas usarão todos os subterfúgios que conhecem, toda magia oculta que lhes foi revelada, encantamentos ou feitiços, qualquer coisa para alcançar seu intento.

Esse lado prostituta de todas as mulheres foi que levou o regime patriarcal romano a caçá-las como bruxas e de onde origina-se a afirmação de que os homens são vítimas inocentes da influência maldosa e perniciosa feminina. O que podemos ver claramente é que no arquétipo de Circe encontramos a ambigüidade: tanto a figura de uma mulher independente, consciente de seus desejos e sua feminilidade, representando o amor, a paixão irracional e um poder incrível, nos mostrando nossa força interior, que não só representa a sexualidade mas também os tesouros do inconsciente, como também o demônio sedutor, que, alucinado, só quer porque não teve, ama porque não lhe tem amor. Deseja sempre o impossível, o desafio de conquistar é o que lhe move.

Encontramos em textos que Circe nos diz que depois da dor vem o saber, do saber surge o crescimento, o crescimento nos leva à transformação, da transformação emana o poder e o poder pode nos conduzir à ruína ou à glória. E é essa a grande escolha de uma feiticeira ou bruxa: como exercer a magia e a sedução que encontrou dentro de si? Como transformar sua vida sem prejudicar ou metamorfosear outras vidas e mesmo assim ainda construindo per e para si o seu caminho? Questões que somente são respondidas quando, assim como Circe, aporta um herói em nossa praia, trazendo consigo a coragem e o sentimento que ao mesmo tempo espalhamos e tememos...

Quando têm velocidades diferentes, os caminhantes se despedem; Ulisses e Circe tiveram um ano de amor. A grandiosidade de Circe é exercida no final do mito: o caráter dessa deusa feiticeira, que aceita o adeus do homem amado e ainda o ajuda a trilhar o caminho para chegar são e salvo à sua pátria e à sua mulher. Na minha visão, somente quem tem dentro de si um amor incondicional consegue libertar e ainda preservar o amado. Assim, Circe, com o herói Ulisses, conheceu o feitiço mais poderoso: Eros, temido até por Zeus, acertou-lhe o coração. Não podemos nos esquecer de que Eros se casou com Psiquê contra a vontade de Afrodite. Às vezes, a vontade de uma mulher (mesmo que seja uma deusa) não prevalece sobre uma paixão intensa, fortíssima, arrebatadora por outra mulher (ainda que esta outra não seja bem uma deusa...). Foi assim que mesmo com todos seus encantos e sedução Circe não venceu a outra, Penélope, porém soube aceitar e agradecer o sentimento que viveu.

Certas pessoas desprovidas de raciocínio lógico inventam para suas vidas uma verdadeira tragédia. Montam um palco de horrores nem sempre real, criam ilusões de sacrifício e entram em cena... E ainda querem que a gente participe dessa peça! Eu, de minha parte, nem na platéia. Drama mexicano ocorre em novelas; bruxas e feiticeiras sabem quando se retiram do palco, dando adeus e aos deuses aquilo que não podem alterar...

Até mesmo os melhores navios um dia ficam fora da rota. O segredo é que as feiticeiras, como Circe, têm um senso de destinação. Conhecem a trilha. E estão sempre corrigindo o curso, de novo, e de novo...

"Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Así y distingo dicha de quebranto
Los dos materiales que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto".

(Violeta Parra)
(*)personagem épico de Odisséia, de Homero.

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