terça-feira, janeiro 06, 2009


glória a Deus sobre todas as coisas.

Arrematei textos do Caio Fernando Abreu, com mil fitinhas do bonfim que tenho por aqui - tudo em "ponto sombra", que é o avesso do bordado. Vezemquando, palavras de outros podem nos salvar do silêncio imposto.
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Guarde este recado: Algo sempre nos falta — o que chamamos de Deus, o que chamamos de amor, saúde, dinheiro, esperança ou paz. Sentir sede, faz parte. Sentir a falta do amor, isso atormenta. E sem amor, podemos caminhar, até sem dor, embora doa a ausência, profundamente e em segredo. Porque a vida é tecelã imprevisível, e ponto dado aqui vezenquando só vai ser arrematado lá na frente, temos que continuar vivendo. Além do Amor, só esta coisa é fundamental (e dificílima): acreditar naquilo que lhe preenche. E continuar, e recomeçar... Porque “Quando achamos que temos todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas".

Aconteceram milhares de coisas que não tem espaço aqui pra contar. Coisas duras, tristes, perigosas, assustadoras, mas A Mulher seguia sempre em frente. Meio de saia-justa, porque tinham dito pra ela (uns amigos najas) que mesmo encontrando o Amor, ele podia simplesmente não gostar dela. E continuar invisível, apenas em seus sonhos (o que era o de menos), ou até fazer maldades horríveis com a pobre. Assustada, insegura, sozinha, cada vez mais faminta e triste, a mulher que acreditava continuava caminhando. Chorava às vezes, rezava sempre. Pensava no amor o tempo todo. E sem ninguém saber, sonhava. E em segredo, cada vez mais: acreditava, acreditava.

Um dia, chegou à beira de um rio lamacento e furioso, de nenhuma beleza. Alguma coisa dentro dele disse que do outro lado daquele rio poderia enfim estar com seu Amor. Ela acreditou. Procurou inutilmente um barco, não havia: o único jeito era atravessar o rio a nado, e permanecer, e resistir. Porque do outro lado, conquistaria o que tanto acreditava. Ela não era nenhuma atleta (ao contrário), mas atravessou. Chegou à outra margem exausta, mas viu uma estradinha boba e sentiu que era por ali. Também acreditou. E foi caminhando pela estradinha boba, em direção àquilo em que acreditava.

Então parou. Tão cansada estava, sentou numa pedra. E era tão bonito lá que pensou em descansar um pouco, coitada. Sem querer, dormiu. Quando abriu os olhos — quem estava na pedra ao lado dela? O homem-dos-sonhos, é claro. Aquele homem predestinado, nem tão grande, mas não pequeno, sem asinhas transparentes porque não era anjo, e com tudo a que o Amor diz que tem direito. Muito encabulada, ela quis explicar que não tinha trazido quase nada e foi tirando dos bolsos tudo que lhe restava: farelos de pão, restos de papel, moedinhas. Morta de vergonha, colocou aquela miséria ao lado de seu Amor.

Ele era comum, que nem a gente. A única diferença é que ele era também um Homem Que Acreditava. E uma vez que acreditava em clichês e sonhos, a mulher repetiu baixinho: “O vento agita a água porque é capaz de penetrá-la”. E agora pouco importa que ninguém — de certa forma, nem mesmo eu, que estou cá inventando esta história — entenda isso que se passou, amanhã ou ontem. Existe Amor, e para sempre, mesmo que esse amor sempre seja um misto de dor também.

O resto da história é que, de repente, a mulher estava num barco que deslizava sob colunas enormes, esculpidas em pedras. Lindas colunas cheias de formas sobre o rio manso como um tapete mágico onde ia o barquinho no qual ela estava. E acordou no mesmo lugar (o seu quarto) de onde tinha saído um dia. Era de manhã bem cedo. O homem-que-acreditava abriu todas as janelas para o dia azul brilhante. Respirou fundo, sorriu. E ao seu lado a Mulher-que-acreditava, sorriu ainda mais quando, sem esforço, lembrou do quanto já havia caminhado: quem acredita sabe encontrar.

Os homens já haviam esquecido, mas ela era responsável por aquele que cativara. E mesmo que muita coisa ainda estivesse faltando - porque algo sempre nos falta, ela compreendeu que o essencial era invisível aos olhos alheios: só ela poderia saber o que não poderia se ausentar, em meio a tanta falta. Não garanto que foi feliz para sempre, mas o sorriso dela era lindo quando pensou todas essas coisas — ah, disso eu não tenho a menor dúvida. E você?

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