segunda-feira, setembro 24, 2007


NÃO-ME-ESQUEÇAS

As mãos costumam expressar muita coisa. Para mim, lembranças daquele menininho que eu amava. Antes e com tal profundidade, que hoje toda mão que me oferece algum toque, expressa a tristeza do rosto que o gesto evoca. Guardo em segredo aquela noite, como se fosse um tesouro. E espero que algum dia consiga expressar o profundo regozijo que senti quando o reencontrei por aqui. Fiz um único pedido a este menino querido: Não me esqueças. Ele prometeu bem mais: "Não há obstáculo que me fará ficar longe de ti, quando te reencontrar." Não me esqueças, roguei quando tive que ir embora. Não me esqueças, o nome da flor delicada que hoje plantei, pra simbolizar a promessa cumprida. Só pelo nome, não me esqueças resolveu prosperar exuberante no meu jardim descuidado, em vez de ir morrendo aos poucos, à medida que minha saudade aumenta.

Ainda não sabia que estava sendo cortada brutalmente, e iria secar tal como árvore mutilada, ao ter que ficar tanto tempo longe dele, e só incansável exercício de memória e sonhos recorrentes iriam impedir que tudo que havia entre nós antes-de-tudo-isso-aqui virasse névoa. No fundo de uma caixa, laço verde envolvendo folhas amareladas, o começo destes sonhos. Que já era destino antes de ser realidade. Profundidade, antes de ser intimidade. Primeira linha, letra firme, coemça assim...

"Ele tinha olhos de lince, verdes tão negros, às vezes até amarelo, tal qual o gato que anda por aqui. Parecia tão corajoso, mas devo me lembrar de que "nada do que ele demonstra é aquilo que anda em seu interior, o diabo mora nos detalhes". Foram muitas noites que sorrateiramente apareci em seus sonhos, pra segurar sua mão. Gostava quando ele despertava encantado, já com um sorriso pronto. E eu debochava, "Medo de bicho papão ou do escuro hoje?" Ele ria, feliz. Então um dia, ele com nove anos, fui pra avisar de não poderia mais vê-lo. Não do jeito que ele estava acostumado, em sonhos tão reais... Eu iria voltar a Terra, em algum lugar distante, pra reencontrá-lo. Mas levaria muito tempo para isso. Lembro que sua face não dizia nada, mas seus olhos expressavam muita raiva. Tinha que ser assim, tentei consolá-lo. Ele dizia que preferia o sonho à realidade sem mim. Se eu pudesse escolher, se eu pudesse optar... mas não havia como voltar naquilo que nós dois havíamos escolhido muito antes. Disse para eu sair, fechou a porta, "eu te odeio" foi o que eu ouvi. Sentei no alto da escada, e chorava muito, enquanto ele desabava sua raiva: "Quando eu te encontrar, pode ter certeza, vou fazer você chorar todas essas lágrimas novamente. As minhas e as suas. Posso me esquecer disso quando acordar, mas garanto que, de algum modo, vou me lembrar de fazer você chorar, quando a gente se encontrar, você vai ver". Não sabia o que lhe dizer, as palavras não saíam, como explicar o inexplicável a alguém? "Prometo a você que não importam as lágrimas, eu sempre vou estar ao seu lado. Você também vai ver". Meu vestido branco molhado, meu rosto inchado, eu me via como a aparição mais grotesca e fantasmagórica da história. Segurava uma das minhas mãos na outra, numa tentativa gestual de consolo, deslizando suavemente a outra mão sobre outra. Foi então que a porta se abriu levemente, e ele foi até mim. Sentado ao meu lado, pegou uma das minhas mãos, e tentou esboçar um sorriso. Olhou profundamente nos meus olhos e disse: "Você sabe que eu vou fazer exatamente o que eu disse, não é? Tenho essa mania, de ferir aqueles que eu amo, se um dia me feriram. Mas vou te contar um segredo: eu amo você. Mais do que jamais vou te confessar quando te encontrar. Se a lenga-lenga daquilo que tanto disseste, aquilo de que "não há força que o amor não termine por superar", se isso for verdade, a gente fica junto, tá bom assim? Prove pra mim que me ama. Muito, mais e pra sempre". Depositou um beijo na minha face, levantou, e entrou novamente em seu quarto. Antes de fechar a porta, sorriu de lado e disse que dali em diante jamais iria sonhar. Agora era a vez dele ir até mim. "Vou te reconhecer, você vai ver. Pelas lágrimas, gatinha. Quando você chorar bastante, é sinal de que estarei cumprindo a promessa. Mesmo que eu não saiba, vou te reconhecer". Desde cedo, ditador! Lembro de ter contato com esse menininho muito tempo depois, quando já estava na terra há três ou quatro anos. Algo com ele havia acontecido, e eu passei dias internada no hospital. Dias de muita dor, dias de esperança. Dias de consolo. O que ele muito sentia lá, eu refletia de algum modo aqui. Não me esqueças significa então, esse amor verdadeiro, essa lembrança perene, esse menininho-amor. Para mim, a flor da promessa que cumpro com rara devoção.

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