sexta-feira, julho 20, 2007

Quando crescer, quero ter asas.

Todas as coisas têm mãe.
O ciclo das estações que nos rodeia, as mudanças da lua, as marés, as tempestades, o movimento do mundo... Tudo tem um porquê, nada é por “acaso”. O Sol é mãe, Coaracy, pois seu calor acolhe. A Lua é mãe, Yacy, pois muda como a mulher e as marés e ordena a agricultura. O mundo tem seus próprios ciclos, ninguém os determina. E nós, como parte integrante do mundo, interagimos nele. Ela nos vive, seres humanos, assim como vivemos e morremos sobre ela e voltamos para o seu útero. Ela é a inteligência primeira das coisas que conhecemos.

Na mitologia indígena não faltam deusas. Deuses, no entendimento dos homens, significam culto, templos, oferendas, sacrifícios, manobras mágicas sofisticadas para ler o alfabeto do mundo. Não em um lugar como o Brasil em que os frutos encontram-se ao alcance da mão, onde os predadores naturais do homem são exíguos se comparados ao norte da Europa, por exemplo. Nosso clima e nossa biodiversidade, resultado das acomodações da placa tectônica mais antiga do mundo, não criou as adversidades que outros povos experimentaram. Não é a toa que vieram procurar pelas nossas bandas, o Eldorado. Por que teriam os povos da selva criado, antes de tudo, deuses guerreiros e reguladores, instauradores da lei e da ordem, como é normalmente promulgado pelos mitos e por outros relatos? Que ordem social e sagrada era essa, anterior aos heróis míticos brasileiros?

A Mãe do Brasil traz em si seus filhos, homens e mulheres. Contém o feminino que lhe é intrínseco e o masculino, que lhe é primeiro imanente e depois extrínseco; os gêneros, os sexos, vieram de Cy. Para compreender a noção de "Deusa", que instaura uma quebra de paradigmas na noção vigente de divindade, é necessário alterar o ponto de vista padrão assim como para se compreender a sacralidade dos povos indígenas temos que nos despir de muitas idéias pré-concebidas. Cy - Mãe. Forma antiga. Hoje em todo Amazonas se usa mais correntemente de Maí ou Mánha. Maíra, ou Maíra-Monan, ou ainda Monan-Maíra, é considerado o criador do universo de algumas tribos indígenas brasileiras. Maíra seria o duplo de Monan, o deus primordial e Maíra um deus vivo e que age na ordenação do mundo. Segundo Mircea Eliade, os primeiros deuses foram os do céu, a hierofania uraniana. Em diversas civilizações esse primeiro deus, distante dos assuntos humanos, foi esquecido e substituído pelos deuses solares, não raro vistos como masculinos. Esse é caso do solar Maíra, filho do uraniano Monan. Curiosamente a primeira sílaba de Maíra é Mai. Pensemos: Maí, como aponta Stradelli, é o primeiro significado de Mãe. Mâyâ ou Mâhal é a mãe mítica de Buda, e a deusa egípcia Marica "a água-mãe", "o ventre da natureza", eternamente virgem e eternamente fecunda", não deixa de evocar a Míriam judaico-cristã".

Cy, todavia, além de ser conservado em muitas terminações, como Iacy, Coaracy, é ainda muito usado em muitos lugares sempre que se refere a alguma coisa das mães, que, conforme a crença indígena, foi a origem e hoje preside ao destino das coisas que dela se originaram. Todavia nada encontrei nos mitos correntes, seja nas publicações explicitamente romanceadas, seja no relato fiel colhido hoje pelos nossos etnólogos, folcloristas e antropólogos, que se refira diretamente a Cy. Seu nome não consta nas cosmogonias dos povos indígenas. Mas ouvimos falar de Iacy (Mãe da Lua e dos vegetais), de Coaracy (Mãe do Sol que se vai), de Aracy ( Mãe do Dia), de Tatacy ou Tatamanha, Mãe do Fogo, e de diversas outras Mães das coisas. O indígena não concebe nada do que existe sem mãe. Simplista, estende a necessidade que ele teve para existir de uma mãe, a tudo o que existe -; o pai, desde que ele acredita em virgens parideiras, não é de necessidade absoluta. Os pais dos nossos heróis míticos não são conhecidos. A mãe, sim. Isso nos remonta ao conceito que antigamente o homem não conhecia o seu papel na concepção. Ou que não podia garantir a paternidade dos seus filhos, já que a 'moral' de hoje, entre os indígenas, não era a mesma de tempos remotos.

Sabemos que o controle sobre a sexualidade feminina nasce da necessidade masculina de controlar do parentesco. Os filhos herdariam a terra conquistada pelos pais e essa é a origem do cinto de castidade. Garantia da paternidade, garantia das terras e poder. Assegurar a supremacia sobre a mulher equivalia a ser 'O Dono da Terra'. Organização social apoiada pelos costumes e por diversos sistemas religiosos durante séculos, principalmente depois da descoberta da agricultura, é o que nos conta Magalhães, em "O Selvagem". Eu diria que esta parte a gente já ascendeu - temos o exame de DNA, e só é pai por engano aquele que quer.

Mitos de diversas procedências apoiam a tese das virgens parideiras, aquelas que dão a luz de si mesmas, por intermédio da partenogênese, ou autofecundação. Deusas gregas, babilônicas, africanas, tupi, inclusive Maria, a deusa cristã. A mulher seria fecundada por um raio de lua, por um animal sagrado, pelo sumo de uma fruta, por banhar-se no lago sagrado. As danças sagradas em que a ondulação em forma do número oito, símbolo do infinito, estão presentes e repetem por analogia, a criação do mundo pela mulher. Através dos movimentos do corpo, criam dentro de si a semente geradora de vida.

No mito de Eurínome, deusa primordial grega, assim acontece. A Deusa Mãe dá luz ao mundo através da dança. Seu coração pulsa na terra e no oceano, no sangue que irrompe em cada mulher. Cy está transformada em milhões de insetos, pássaros, frutos, estrelas, em uma dança espiral. E não necessita de representação. A mãe, pois é sempre necessária para que haja vida; por via disso tudo tem mãe, a cy como verdadeira mãe que é não abandona os seres que lhe devem a vida, lhes vigia o desenvolvimento, os guia e os protege para que consigam o próprio destino, acompanhando-os e protegendo-os da nascença até a morte. A criação é, pois devida à fecundidade das mães das coisas animadas e inanimadas, ou melhor, das coisas, - porque para o indígena que acredita na cy, não há coisas animadas e inanimadas; - todas as coisas têm alma. A ela é devida a sua conservação. Sem a mãe não há vida, nem a vida se conserva. A cy é indispensável para a conservação e perpetuação, como o foi para a primeira produção. Este é o animismo sagrado dos indígenas. Pedras, árvores, frutas, montanhas, estrelas, animais, tudo tem vida e está interligado, como mostra a mitologia indígena. Em Stradelli, temos cy novamente: “De onde porém lhes provêm, e quem mantém a fecundidade das mães? Do sol não, da lua menos; o primeiro é a mãe do dia, e a segunda a mãe das frutas, mas por via disso mesmo nem esta nem aquele podem ser o fecundador da mãe das coisas, o princípio masculino. Será este Tupana, o deus tupi? Talvez, se para eles Tupana é, como me parece poder asseverar, o ser indefinido, que paira acima de tudo no além, imaterial, informe, misterioso, como a causa que faz nascer, desenvolver e morrer todas as coisas do universo, sendo ao mesmo tempo princípio gerador e destruidor. Se este é todavia o conceito tupi de Tupana, devo confessar que nunca nenhum indígena m'o explicou, nem mostrou pensá-lo.”

Tupana é uma variação no nheengatu para Tupã, força da natureza identificada com o deus cristão. Significa o barulho trovão. Os jesuítas, não encontrando nenhum correlato no Brasil que correspondesse à idéia do seu deus onipotente, pois os heróis solares mais lhe pareciam demônios, viram em Tupã uma possível correspondência para o seu sincretismo. O método cristão sempre foi esse, o de erigir suas igrejas sobre templos dedicados aos deuses pagãos, sobrepor suas datas às antigas comemorações, tomar muitas vezes os nomes dos antigos deuses e transformá-los em santos. Aqui chegando, devem ter ficado como baratas tontas, à procura de possíveis correspondências que os possibilitassem implantar a sua doutrina. No meio da profusão de cheiros, seres de cor diferente com as “vergonhas” expostas, hábitos estes inimagináveis para os europeus, os padres apontando para o céu e perguntando para o indígena quem era aquele que habitava o firmamento, tiveram como resposta "tupã', palavra que repete, pela onomatopéia, o barulho do trovão.

Do pouco que conheço das crenças e tradições indígenas, me parece poder afirmar que a idéia de um ser criador de todas as cousas, dono e regedor deste Universo não a tem, nem em geral a compreendem. Tupana não passa da mãe do trovão, tida na mesma consideração de todas as outras mães, mas porque mãe de cousas de que o indígena não precisa, que dispensa, é uma mãe que não se honra nem se festeja. Na realidade, quando todas as outras mães têm danças e festas, que lhe são dedicadas, nunca ouvi que houvesse festa dedicada a Tupana. (Câmara Cascudo, em diversas citações).

Tupã foi assimilado pelos indígenas como o deus cristão. Ele, que na verdade seria um gênio do ar, subiu consideravelmente de posto. Hoje, em diversos relatos míticos colhidos diretamente dos silvícolas, e quase sempre nas lendas romanceadas, Tupã é responsável pela criação do mundo. O que me têm repetidamente afirmado é que todas as coisas, os astros, as serras, os lagos, os rios, as plantas, os animais, e as próprias pedras têm alma, sentem; e que todas tem uma mãe que vive, da mesma vida, têm as mesmas necessidades, lutas, prazeres e instintos das coisas que lhe deram o ser; e são estas mães, começando pelo sol e pela lua, e não Tupana, que quando precisam vive na abundância de tudo, é feliz em tudo. Ai! daquele que as ofende! que as desrespeita! Para ele só há desgostos e misérias. Como quer que seja, Tupana parece alheio aos negócios desta baixa terra; - as que tudo regulam são as mães.

A Deusa não governa o universo, ela é o universo. A Deusa não instaura a ordem, ela é a lógica e o coração do universo, seus movimentos, suas correspondências. Para entender seu mito é preciso raciocinar de modo holístico e deixar de lado as doutrinas dualistas, cientificistas e mecaniscistas que permearam até hoje a nossa relação com o mundo. Para se entender o conceito de uma Deusa-Mãe, cumpre que mudemos o nosso paradigma de apreensão das coisas. Cy gerava em si mesma o outro e como era a origem de tudo, partiu do seu corpo o nascimento dos viventes. Não nos diz a própria Bíblia, quando nos fala de Sofia, a sabedoria, mais tarde relacionada com da Imaculada Conceição, que antes dos abismos serem criados ela já existia?

A theogonia dos índios assenta-se sobre essa idéia capital: todas as coisas creadas têm mãe. É de notar-se que eles não empregam a palavra pae; esta palavra pae não indica a origem de um homem, sinão em uma sociedade em que o casamento tenha já excluído a comunidade de mulheres; e, portanto, não podia ser empregada pelos nossos selvagens em estado tão rudimentar da civilização. (Couto Magalhães).

A agricultura sempre esteve ligada ao feminino. Yacy, a lua, é a Mãe dos Vegetais. No crescimento das plantas, no plantio e no período das colheitas, são observadas as fases da lua, prática corrente de tempos imemoriais. As facetas de inúmeras deusas correspondem a determinadas fases. Pensando nas deusas gregas, por exemplo, não é difícil relacionar Deméter à lua cheia, quando o sumo dos vegetais está no seu máximo. Muito menos ligar Ártemis, deusa dos campos incultos, com a natureza que cresce, profícua, e à lua crescente que ostenta como atributo na testa. Perséfone, na sua descida ao Hades, ao subsolo, é a lua que mingua, se escondendo como a semente embaixo da terra. Hécate, deusa das bruxas, traz em si a Donzela, fase crescente; a Mãe, fase cheia e a Anciã, fase minguante, representando as três idades da mulher e as suas transformações. A lua preside o crescimento e os processos de diminuição. Durante muito tempo o plantio e a colheita foram atributos femininos, e isso também nos mostra a cultura dos nossos povos autócnes. A fertilidade do solo era associada à fertilidade das mulheres, e vice-versa, em inúmeras civilizações. Divindades femininas e ritos agrários sempre andaram juntos. Estranho seria ver algum deus associado a essa função como é atribuído a Maira-Monan e Tupã.

Nos autos, a genialidade de Anchieta, a serviço da Igreja, cria Tupansy. Ora, se Tupã é o similar do deus cristão, quem seria a Virgem Maria? Tenhamos em conta que isso se deu em meados do século XVI, quando foram escritos os autos, representados pelos índios já catequizados ou em vias de catequização. Originalmente, os autos foram representados em tupi-guarani (Língua Geral, sistematizada também pelos jesuítas, com importante colaboração de Anchieta) já que tinham como objetivo a catequização do gentio. Não é necessário dizer que mulheres não participavam das peças, como mandava a tradição imposta pela Companhia de Jesus. Não havia, inclusive, nem personagens femininos nas representações teatrais. Anchieta quebra esta regra colocando personagens femininos no seu elenco, embora sempre alegorizadas: A bruxa Ingratidão, A Vila da Vitória, A Virgem Maria... apenas em um de seus autos, em curtíssima e sintética aparição, é dada a voz a uma velha índia. Assim mesmo, na hora de representá-la, era um homem que o fazia. Então, para que o indígena compreendesse o conceito de Virgem Maria, Anchieta anexa o vocábulo "sy" ao nome de Tupan. Pronto, feita estava a Virgem Maria, no seu papel de Imaculada Conceição, aquela que já existia antes dos abismos serem criados, agora Tupansy, Mãe de Tupã, a Mãe de deus.

No clássico modernista Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, em que Ci é a Rainha das Amazonas. Macunaíma a encontra dormindo. Vê que um dos seus seios é seco, o que mostra que ela faz parte da tribo das mulheres sozinhas. Macunaíma ataca Ci, que se defende usando uma lança de três dentes, a txara (arma caxinaúa). Macunaíma apanha muito, mas com a ajuda dos irmãos consegue dominá-la. Macunaíma então, possui Ci. Neste momento, surge um bando de pássaros, araras, pagagaios e periquitos que vêm saudar Macunaíma que, por ter se “casado” com a moça, se torna o Imperador do Mato Virgem. Macunaíma domou Ci, a Mãe do Mato. O casal viaja muito e a amazona tece, com seus próprios cabelos, a rede onde faz amor com o herói. Macunaíma endoidecia com o cheiro de Ci e o casal inventava sempre novas formas de brincar. Ci engravida e dá um filho ao herói, mas a cobra preta chupa o único seio de Ci que, em seguida, amamenta o filho. O menino morre e depois dos funerais Ci presenteia Macunaíma com um muiraquitã, o talismã das amazonas. Desgostosa da vida pela perda do filho, resolve ir para o céu, subindo por um cipó. No céu, vira estrela. Macunaíma chora de saudades de Ci no decorrer dos capítulos e passa o tempo todo atrás do muiraquitã, que, sucessivamente, sempre está perdendo.

Marcel Homet declama em uma de suas obras: “A procissão vinha se aproximando. Ao som agudo dos tambores de guerra, juntava-se, a intervalos regulares, o ruído surdo do tam-tam da aldeia. Um tambor enorme feito de um tronco de árvore fixado ao solo por quatro estacas repetia a palavra dentro do claro-escuro da noite que vinha caindo. Árvores gigantescas, de cujos galhos pendiam estranhos parasitas, curvavam-se sobre o 'Rei do Rios", o rio-mar, o rio das Amazonas, cujas águas corriam lentamente, imperturbavelmente, com um a força tranqüila e incoercível. Sobre uma padiola, feita de ramos, havia uma silhueta deitada, envolta em folhas de bananeira. Seria um homem ou uma mulher? Um morto, em todo caso. Quatro homens o carregavam. Ao ritmo sincopado dos tamborins, os carregadores avançavam, recuavam, tornavam a seguir, enquanto o feiticeiro da tribo, com o corpo pintado de cores vivas, com a cabeleira enfeitada de plumas e as orelhas aguçadas, - parecia esperar a resposta a uma pergunta que tivesse formulado mentalmente. Pouco demais o cortejo se imobilizou defronte a uma frágil cúpula feita com folhas de bananeira, sob a qual se podia distinguir uma espécie de boneca feita de pano e cascas de árvores laminadas e coloridas. A seguir o feiticeiro encenou uma mímica desenfreada como se continuasse querendo escutar algo ... pouco depois readquiria a expressão normal e, a um sinal, a procissão se pôs de novo a caminho, exatamente em direção ao lugar do sepultamento, visto a deusa, provida de enorme posterior, a "Venus Steatopigia" ter aceitado as explicações do morto. De cabeça em forma de pêra; seios volumosos e caídos sobre um ventre proeminente como o de uma mulher grávida; nádegas enormes e de forma extravagante, saindo dos rins diretamente, quase em ângulo reto; sexo acentuadamente marcado e pintado de vermelho berrante, com seus bordos exteriores extremamente desenvolvidos.

Ora, a "Vênus Steatopigia" não aparece só no continente europeu. Nossas descobertas no Amazonas provam que a "Vênus Steatopigia" brasileira se apresenta nas mesmas condições que suas irmãs que existiram a leste do Oceano Atlântico". Já Françoise d'Euabonne, em seu livro As Mulheres antes do patriarcado, propõe que uma tríade simbólica que caracterizava os antigos cultos às Grandes Mães, formada pela serpente, a lua e o sexo. Essa hierofania encontra ecos na estrutura mítica "Lua-Água-Mulher". Essa estrutura mítica espelha também a Morte, um outro pólo dialético do feminino. A Mãe sempre rege o ciclo vida-morte-vida. E a mãe, muitas vezes, é aquela que nos devora, intimamente, fazendo com que adultas, vivamos suas vidas, seus sonhos... e nos sintamos perdidas no crepúsculo da noite. A mãe, sim, é aquela que pode nos enterrar vivas, mesmo sem maldade. Porque extensões dela, propriedades. Triste ilusão.

O útero pode ser também uma triste prisão.

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