sexta-feira, julho 20, 2007

Cila:.

Glauco, um simples pescador, certo dia, recolhendo as redes, verificou que apanhara muitos peixes. Esvaziou-a, e tratou de separar os peixes, na relva. O lugar em que se encontrava era uma bela ilha fluvial, desabitada e não usada nem mesmo para pastagem de gado, que jamais fora visitada, a não ser por este.

Subitamente, enquanto separava sua excelente pescada, os peixes começaram a reviver e mover as barbatanas, e moveram-se a um só tempo para a água, nela mergulharam e se afastaram. Sem saber o que fazer, resolve provar uma erva encontrada ali, e mal o suco da planta atingiu-lhe o palato, ele se sentiu agitado por um violento desejo de penetrar na água. Quando mergulhou os deuses o receberam com benevolência, e com o consentimento de Oceano e Tétis, o transmutaram, em forma e espírito.

Quando voltou a si, seus cabelos, verdes como o mar, se arrastavam pela água, os ombros tinham se alargado e as pernas assumiram a forma de uma cauda de peixe. Porém os deuses da água o cumprimentaram pela mudança de seu aspecto, e ele imaginou-se um personagem de bela aparência, pelo deslumbrar destes. O pescador havia virado deus, e deslumbrava-se com sua forma, identificando-se com a beleza que os deuses viam nele, não vendo sua horrenda aparência, na realidade. Torna-se, assim, um deus marinho de barba verde-acinzentada, largos ombros, braços azulados, pernas curvadas com nadadeiras na extremidade...

Um dia enamora-se perdidamente pela bela Ninfa Cila, favorita das ninfas das água, que, apavorada pela súbita presença de Glauco, põe-se a fugir, pelas águas, pelas rochas, pelas cavernas submarinas. Mas o amor do pobre deus era definitivo, e de nada valia sua imortalidade se não conseguia mover o coração da bela ninfa. Desesperado, ele se lança à perseguição da ninfa, implorando, com gritos e prantos convulsos, que lhe conceda um pouco de atenção. Impassível às súplicas, Cila continua sua fuga. Tem por objetivo esconder-se num lugar tão secreto e inacessível que jamais o feio Glauco conseguiria encontrá-la. Depois de inúteis buscas, o deus é obrigado a reconhecer sua derrota. Apenas algum poder superior lhe facultaria conquistar o afeto da formosa ninfa, e convencido disso, decide usar de todos os meios para que a ninfa Cila caia em sua "rede amorosa".

Sai à procura de Circe, a feiticeira, que era tudo o que ele achava que precisava. Abatido e torturado, Glauco dirige-se para a ilha de Ea, onde morava a bruxa e, entre suspiros e lágrimas, roga-lhe que o ajude a conquistar a tão amada ninfa.

“Deusa, imploro tua piedade. Somente tu podes aliviar meu sofrimento. Conheço o poder das ervas melhor que ninguém, pois a elas devo minha mudança de forma. Amo Cila. Envergonho-me de contar-te como a cortejei e lhe fiz promessas, e quão desdenhosamente ela me tratou. Peço-te que uses de teus encantamentos, ou ervas poderosas, se têm mais valor, não para curar-me do meu amor, pois não desejo tal coisa, e sim para fazer com que Cila o compartilhe e me retribua”.

Circe promete atendê-lo. Entretanto, o feitiço acaba contagiando a feiticeira, e esta termina por enamorar-se do feio deus Glauco. Não lhe importava o aspecto horrendo de Glauco: sua riqueza de sentimentos fascinava-a. A mesma dolorosa peregrinação, antes Glauco por Cila, agora Circe reinicia-a pelo pescador. Ao encalço do amado, Circe põe-se a percorrer os mares, sem descanso.

"Glauco, seria melhor que procurasses um objeto complacente ao teu amor, pois és digno de ser procurado, em vez de procurar em vão. Não sejas tímido, conheces de teu próprio valor. Afirmo-te que mesmo eu, deusa como sou, e conhecedora das virtudes das plantas e encantamentos, não saberia como te resistir. Se ela te despreza, despreza-a também. Procura alguém que te encontre a meio caminho, e assim possam ambos ser satisfeitos, a um só tempo".

Porém Glauco retruca: "Mais cedo crescerão árvores no fundo do oceano, e algas no alto das montanhas, do que deixarei de amar Cila, e somente a ela".

A deusa fica indignada, mas não consegue puni-lo, pelo amor que sentia, e assim resolve voltar toda a sua ira contra a rival, Cila. Quando, por fim, seus encantos de mulher se revelam insuficientes para conquistar Glauco, recorre a seus poderes de feiticeira, e à sua habilidade de transformar pessoas em monstros. Decide fazer de Cila uma criatura tão horrenda e repulsiva, que todo o amor de Glauco haveria de mudar-se em aversão. Sem ser vista, a maga derrama veneno nas águas de uma fonte onde a ninfa costumava banhar-se, e retorna para Ea , ansiosa, aguardando pelos resultados.

Cila mergulha na água enfeitiçada, e seu belo corpo esguio começa lentamente a transformar-se. Monstros horrendos surgem à sua volta, uma ninhada de serpentes e monstros, com ensurdecedor alarido. Transforma-se num corpo onde, das virilhas para baixo compõe-se de 6 cães horríveis, enquanto a parte superior do corpo permanece como era. A ninfa, amedrontada, procura fugir desta visão pavorosa que emerge das águas. Mas eles estão sempre a seu lado. Então Cila descobre: são parte de si mesma, nascem de seu corpo; não havia como fugir ou livrar-se das mesmas.

Desesperada, corre ao encontro de Glauco, e em seus braços chora longamente. Ele também lamenta a beleza perdida, mas recusa-se a permanecer com a ninfa. O grande amor que sentia por ela não existe mais, acabou-se após a retirada da beleza. Cila, sozinha e sem esperanças, retira-se para longe, jogando-se ao mar, e estabelecendo-se num rochedo à margem do estreito de Messina. Agora era habitante de uma gruta situada neste estreito, no sul da Itália, diante de Caribde, e seu gênio passa a ser tão horrível quanto sua forma, tornando-se o terror dos marinheiros, e comprazendo-se em devorar os inermes mortais que antes a cortejavam, deslumbrados com sua extraordinária beleza.
Cila (g. Skilla; "cadela". Latim, scylla), agora um monstro marinho feminino, primeiro atrai suas vítimas com sua metade de corpo bela, depois devora-as rapidamente com suas enormes goelas caninas. Em sua miséria inexprimível, passa a odiar e a destruir tudo o que se aproximasse dos seus domínios, como bem o ficaram sabendo Jasão, Odisseu e Enéias.
Ulisses perdeu seis companheiros para Cila, mas esta teve seu fim quando Heracles/Hércules passava pelo sul da Itália, de volta dos domínios de Geríon. Os cães do corpo de Cila devoraram alguns dos bois do rebanho que ele trazia, e o herói matou-a numa luta difícil.
Entretanto, dizem alguns mitólogos que Fórcis, seu pai, com grandes tochas acesas, conseguiu ressuscitar a filha, graças aos seus poderes mágicos. Mais tarde, Cila, e no lado oposto do estreito, Caríbdis, foram identificadas com o redemoinho existente no estreito de Messina.

Já na ilha de Ea, Circe inutilmente espera o retorno de Glauco. Revoltado com sua traição e crueldade, o pobre deus jamais quis visitá-la. E passou toda a existência cultivando a lembrança de uma ninfa bela e doce, que um dia se perdeu nos feitiços do ciúme de uma Rival.

Versões Diferentes do Mesmo Mito

Cila aparece como filha da deusa Crataeis, ora de Tríeno, ora do deus marinho Fórcis com Hécate [que adoto], ou de Tífon e de Êquidna, ou finalmente de Lâmia. Há várias versões de sua lenda de metamorfose; em uma Poseidon é quem se apaixona e Anfitrite é que pede a Circe que a transforme em Monstro. Numa outra versão, Cila apaixonada por Glauco, desprezou Poseidon, que a transformou em monstro. Muitos a confundem com Caribde, que se postava num rochedo, filha da Terra e de Posídon, e 3 vezes por dia absorvia uma grande quantidade de água, engolindo tudo quanto passava; para depois rejeitar a água. Porém Cila era o outro monstro, que junto de Caribde também aguardava os navegantes.

Keats, no poema "Endimião", oferece-nos uma nova versão do fim do episódio de Glauco e Cila. << Glauco curva-se aos encantos de Circe, até que, por acaso, presencia suas bruxarias com os animais. Desgostoso com a traição e crueldade da deusa, tenta fugir, mas é capturado, e Circe o expulsa, condenando-o a passar mil anos de decrepitude e sofrimento. Glauco volta ao mar e ali encontra o corpo de Cila, que a deusa não metamorfoseara, mas afogara. Termina por Glauco aprender que seu destino é este: passar mil anos recolhendo os corpos dos amantes afogados. Um dia, um jovem amado dos deuses surgirá para ampará-lo, e Endimião cumprirá a profecia, restituindo a Glauco a mocidade e a Cila e a todos os amantes afogados, a vida >>.

Elocubrações e Asneiras

Portanto, vemos que Glauco usa e após condena em Circe os mesmos meios que empregou para conquistar um Amor, e da mesma maneira que tragicamente desesperou-se quando rejeitado, despreza o grande amor de sua vida, Cila, tão falado e cultivado, por causa de sua metamorfose horrenda. O amor do Pescador se resumia a casca, a aparência bela, meramente externo, desejo puro.

Circe consegue ver a beleza em Glauco, mas age como uma mulher despeitada, ao colocar em Cila toda a sua frustração pelo amor rejeitado. Não consegue viver com a certeza de que alguém não a amou, por causa de outra. Circe amou o Amor que viu Glauco sentir pela Ninfa, ou apenas quis ter algo que não conseguia? O famoso quero por que quero de muitos, que quando têm o que anseiam, postam-no de lado, relegando-o a segundo plano.

Cila, à primeira vista, não consegue ver em Glauco nada além de sua forma horrenda; e da mesma maneira sofre depois com a repulsa deste à sua forma metamorfoseada. E quando se vê sem consolo nenhum, resolve transmutar o seu espírito também, tornando seu gênio horrível, e punindo todos, como se esses fossem responsáveis pela sua tragédia.
Quando Cila vê-se confrontada com a parte de baixo de si, e depara-se com a horrenda figura dos cães, tenta fugir, mas não consegue, pois "fazem parte dela". Isso é algo que vive acontecendo diariamente. Muitos quando se deparam com sua sombra, acham-na negra demais, e se debatem em fugas, que, no fina,l se mostram inúteis, pois esta faz parte do ser. E igualmente fazem como Cila, rendem-se a essa sombra, transformando-se em seres amargos e feios como esta face, deixando que "a Sombra os consuma".

Cila e sua lenda pode ser outra versão do tema que também foi exposto em "O retrato de dorian Gray", e em Dr. Jekill e Dr. Hide, pois nesses livros os personagens também terminam por serem consumidos pela sombra, pelo lado escuro. É este um amor verdadeiro, que tantos declamam e se consomem em tragédias, visto que bastou uma metamorfose para que, o que a princípio era imenso e infinito, se transmutasse também em nada?

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