quinta-feira, junho 08, 2006


Margarida, pra lhe falar:.

Escrever usando palavras de outro é um subterfúgio? Fuga? Indica medo de comprometer-se, ou enfatiza que a pedra que todos acham que é pirita é, simplesmente, ouro dentro de mim? Cada qual que faça sua escolha, e lhe pareça como fosse. Escolho a própria máscara, e isto é um gesto voluntário e demanda solicitude. "Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada... Deus meu, se a gente não se guarda, como nos roubam! Na verdade, acho que nosso contato é como se fosse sobrenatural, tudo em momentos sendo feito em silêncio, e numa profunda meditação solitária. Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: "Que Deus me ajude". Venha, Deus, venha, mesmo que eu não mereça, venha. Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpfas. Se tanto amor dentro de mim recebi, e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus venha. E traga meu Amor-Certo. Venha, antes que seja tarde demais. Eu mesmo vivo me levantando e caindo de novo, e me levantando... Não sei qual é o bem disso, sei que é dessa forma confusa de vida que ando vivendo, talvez precisando ir onde eu pudesse ser plenamente Eu, e pudesse sentir plenamente o Outro-Meu, sei que chegaria ao meu porto e lar. Você foi o melhor presente de aniversário, numa hora difícil, de grande solidão. O inesperado-bom. O imprevisto. E sempre que estou desanimada, me encho de imprevistos que tivemos, isso me dá sorte. Você, ah, você nunca foi planejado, nem antevisto. É difícil amar pessoas muito centradas em si mesmas, que exige e absorve bastante a pessoa que ama. Porém, esse fato me faz ansiá-lo ainda mais*."

Aceite o fato de que só consigo ser compreendida a partir de dentro, conhecendo os detalhes e ressonâncias de meu passado, a criança espantada, adolescente inquieta, fascinada pelo mundo dos livros, a mulher-criança, angustiada e dividida entre o amor para consigo, e os eternos e cobrados valores sociais. Nesse instante, estará se vendo - porque sou uma pessoa que tem um coração igual, com alma idêntica, percebo as palavras que deixa mudas em seu mundo, sobretudo quando seu coração bate de alegria, seu sorriso se abre, e, levíssimo consegue em uma frase dizer qualquer coisa para que eu me vá, pra bem longe... Reconheço essa espécie de "salvamento". Porque me vejo em cada ponto de você. Falácia, sofismo, noções de culpa e responsabilidade - sim, eu guardo todas as pedras, pra poder construir mais rápido nosso lar. Não se lembre de todas as bobagens que disse, não leve tão a sério os meus nãos, nem o que eu digo, nem o que eu deixo de esconder. Quero ser, contigo, dois que têm a coragem de errarem ao caminhar, procurando e encontrando a saída, sonhar pelos cotovelos, sem nó, sem lã, sem novelos. Não peço mais por favor, eu vou abrindo a estrada, e se me der um pedaço de plutônio, me encarrego de explodir! Viver é mais que um fado, um fato. Mais dia menos dia, nem se espante, talvez você passe por aqui e nos faça.
Trechos do livro Clarice, uma vida que se conta, de Nádia Gotlib.

"Quero acordar de manhã ao teu lado
e aturar qualquer babado
vou ficar apaixonado, no teu seio aconchegado
ver você dormindo e sorrindo
é tudo que eu quero pra mim..."
"A estrada", Cidade Negra.

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