domingo, maio 28, 2006


Revolução dos diferentes:.

Em "O homem que confundiu a mulher com um chapéu", Oliver Sacks, há 15 anos atrás, escreveu um livro muito interessante, recheado de personagens estranhos, aludindo aos admiráveis poderes da nossa mente e ao delicado equilíbrio que nos sustenta. Foi um dos primeiros contatos do autor (neurologista) com pessoas portadoras de deficiência mental - e o confronto entre a visão que obteve academicamente, e o que a realidade lhe fornecia, através das vidas de seus pacientes, virou esta obra. O mundo dos Simples. Conforme Sacks, o termo "atrasado" sugere uma criança que não evolui, o termo "deficiente mental" sugere um adulto incompleto, porém ambos os termos e os conceitos são uma mistura de verdade e falsidade profunda. Trechos desta obra:

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REBECCA:.
"Rebecca já não era nenhuma criança quando foi enviada à nossa clínica. Tinha dezenove anos mas não se orientava na rua, não era capaz de abrir uma porta com uma chave (nunca conseguiu perceber como é que a chave entrava na fechadura). Não tinha integrado a lateralização, por vezes vestia a roupa ao contrário sem parecer perceber este detalhe, era capaz de passar horas a tentar encaixar uma mão numa luva ao contrário. Parecia não ter sentido do espaço, como uma criança. Desajeitada e descoordenada em todos os movimentos. Um relatório chamava‑lhe Mentecapta, outro deficiente motora, mas quando dançava toda a descoordenação desaparecia. Também possuia uma fenda palatina parcial que provocava assobios quando falava, dedos curtos e grossos, com unhas deformadas, e uma miopia degenerativa avançada, que a obrigava a usar óculos com lentes muito grossas. Tudo isto eram estigmas da mesma condição congênita que lhe provocara a deficiência mental e cerebral. Era extremamente envergonhada e introvertida porque sentia que sempre tinha sido humilhada e ridicularizada por vários. Mas era capaz de emoções fortes, de se ligar a alguém profundamente, até apaixonadamente. Era muito ligada à avó, que a educara desde os três anos (quando ambos os pais morreram). Gostava muito da natureza e, se a levavam a parques ou ao jardim botânico, era capaz de ficar horas seguidas. Também gostava muito de histórias, embora nunca tivesse aprendido a ler (apesar das tentativas sucessivas e mesmo frenéticas), e implorava à avó, ou a outros que as lessem - "Tem fome de histórias", dizia a avó. Também gostava muito de poesia. Parecia ter uma forte necessidade de ouvir ler ‑ uma espécie de alimento de realidade para a sua mente. A natureza era bela mas muda. Não chegava. Precisava das imagens verbais da linguagem para representar o mundo e a realidade, e parecia não ter dificuldade em compreender as metáforas e símbolos, mesmo de poemas muito profundos, o que contrastava profundamente com a sua incapacidade para compreender proposições e informações simples. A linguagem do sentimento, do concreto, da imagem e do símbolo formava um mundo que adorava e que conseguia penetrar de forma admirável. Sua avó era judia devota, e Rebecca adorava a cerimônia das velas do Shabbat, as bênçãos e orações que faziam parte deste dia judaico; ir à sinagoga onde todos gostavam dela (era considerada como filha de Deus, uma espécie de louca inocente e santa), compreendia bem a liturgia, os cânticos, as orações, os ritos e os símbolos do serviço ortodoxo. Conseguia tudo isto, gostava de tudo isto, apesar dos seus graves problemas perceptivos e espaço‑temporais, e da sua grande deficiência na capacidade esquemática: não conseguia conferir troco, era derrotada pelos cálculos mentais mais simples, nunca conseguiu aprender a escrever ou a ler, e tinha uma média de, mais ou menos, sessenta nos testes de Q.I. (embora fosse bastante melhor nos testes verbais do que nos outros). Era como se, a um nível mais profundo, não houvesse quaisquer deficiências ou incapacidades, só uma sensação de calma e totalidade, de ser completa, de estar viva, de ser uma alma profunda a elevada, de ser igual aos outros. Intelectualmente Rebecca sentia‑se deficiente, espiritualmente sentia‑se uma pessoa total e completa.

Quando a vi pela primeira vez ‑ desajeitada, deselegante, desastrada ‑ vi apenas a deficiente, uma criatura incompleta cujas capacidades neurológicas podia catalogar e dissecar com precisão (...) quando voltei a vê-la tudo foi diferente. Ela não estava numa situação de teste em minha clínica, mas passeando num jardim, sentada num banco, olhando calmamente para as flores de Abril com um prazer óbvio. A sua postura já não tinha nada da deselegância que me impressionara tanto no nosso primeiro encontro. Ali, sentada, com um vestido claro, o rosto calmo e um leve sorriso, fez‑me lembrar uma das personagens de Tchekhov: Irene, Anya, Sonya, Nina ‑ com um pomar de cerejeiras tchekhoviano como cenário. Era como qualquer jovem que aprecia um belo dia de Primavera. Esta era a visão humana, oposta à neurológica. Quando me aproximei, ela ouviu os meus passos e voltou‑se, brindando‑me com um sorriso que exprimia mais do que palavras. «Olhe para o mundo», parecia dizer. “Como é belo.» Seguiu‑se, em repentes jacksonianos, uma catadupa poética, estranha a súbita: «Primavera», «nascimento», «crescer», «movimento», «despertar para a vida», «estações», «um tempo para tudo». Dei por mim a pensar no livro do Eclesiastes: «Tudo tem um tempo, há um tempo para tudo. Tempo para nascer e tempo para morrer, tempo para plantar e tempo para... ». Era esta a mensagem que Rebecca, no seu discurso desconjuntado, tentava transmitir: uma visão das estações, dos tempos, tal como a do profeta. «É uma idiota eclesiástica», pensei. E nesta frase as duas visões que eu tinha dela ‑ uma deficiente e uma simbolista ‑ encontraram‑se, colidiram e fundiram‑se. Como é que uma pessoa tão decomposta podia ficar tão recomposta?Comecei a pensar no seu gosto por histórias, pela composição e coerência narrativa. Seria possível que este ser diante de mim ‑ ao mesmo tempo uma jovem encantadora e uma mentecapta, um acidente cognitivo ‑ pudesse usar a narrativa (ou o texto dramático) para elaborar e integrar um mundo coerente, em substituição das capacidades esquemáticas que nela eram tão deficientes, que não funcionavam? Lembrei‑me da forma como dançava, e como a dança organizava os seus movimentos normalmente desajeitados e deselegantes. Ao vê‑la ali, sentada, pensei que os testes e as tentativas de aproximação são ridiculamente inadequados, pois só nos revelam os déficits, não nos mostram as aptidões; quando queremos ver música, narrativa, jogo, um ser que se comporta espontaneamente, de forma natural, tudo o que nos mostram são puzzles e esquemas.

Sentia que Rebecca era um ser “narrativo” completo e intacto, com condições que permitiam a organização da sua personalidade; era muito importante saber isto porque permitia que a víssemos, e ao seu potencial, de forma bastante diferente da que é imposta pelo método esquemático. Tive, talvez, a sorte de conhecer as diferentes facetas de Rebecca ‑ uma tão lesionada e deficiente, a outra tão repleta de promessas e potencialidades ‑ e dela ter sido o primeiro dos pacientes que observei naquela clínica. Aquilo que vi nela, aquilo que ela me ensinou, vejo agora em todos.(...) Dedicávamos muita atenção aos defeitos dos nossos pacientes, e muito pouco ao que neles estava intacto, preservado. Para usar os termos da gíria médica, preocupávamo‑nos muito com a defectologia, e muito pouco com a narratologia, que é a ciência, negligenciada mas necessária, do concreto. Há crianças muito novas que adoram e pedem histórias, e compreendem os assuntos complexos que são apresentados nessas histórias muito antes de terem capacidade para compreender conceitos gerais e paradigmas. É este poder narrativo ou simbólico que nos transmite o sentido do mundo ‑ uma realidade concreta na forma imaginativa de símbolos e histórias ‑ quando o pensamento abstracto não funciona. Uma criança é capaz de compreender as histórias da Bíblia muito antes de compreender Euclides. Não porque a Bíblia seja mais fácil (antes pelo contrário) mas porque é um texto simbólico e narrativo. Poderes emocionais, narrativos e simbólicos como os de Rebecca (como os de todos os deficientes mentais a quem é permitido, ou mesmo encorajado, o desenvolvimento individual) podem‑se desenvolver forte e exuberantemente e produzir (como no caso de Rebecca) uma espécie de poeta natural, ou (como no caso de José) uma espécie de artista natural, ao mesmo tempo que os poderes paradigmáticos e conceptuais, manifestamente fracos desde o início, vão se desgastando lenta e penosamente, ou são apenas capazes de um desenvolvimento muito limitado e hesitante."


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VER E NÃO VER:.
Virgil Adamson foi cego durante praticamente toda a sua vida, e, aos cinqüenta anos submeteu-se a uma cirurgia que lhe restaurou a visão. Sua história e sua dificuldade em enxergar levaram o Dr. Oliver Sacks a examiná-lo e a escrever um relato sobre sua experiência em seu livro. Pode soar estranho que uma pessoa ter 'dificuldade em enxergar', e é justamente por essa razão que esta narrativa é uma das mais interessantes do livro. Enxergar, para nós, que nascemos de olhos bem abertos, já espreitando tudo ao redor, não é novidade, é algo absolutamente normal e habitual. Tanto quanto respirar, comer e dormir. Mas o que dizer de um homem que, ao ver o rosto de uma pessoa, não tem a menor idéia do que está a sua frente; que não é capaz de entender que um cachorro visto de frente é diferente de um cachorro visto de lado; e que, finalmente, estende a mão para tocar um edifício que está a quilômetros de distância (já que, nunca tendo enxergado, não desenvolveu uma perspectiva de distância)? O choque de ser apresentado a um estranho mundo de sombras e movimentos. Colorir-se, por dentro e por fora. O maior paradoxo existente na história é que, depois de ter vivido cinco décadas na mais completa independência (apesar de sua cegueira), se tornou inseguro e dependente justamente ao recuperar a visão - sendo esta a prova definitiva de que a maior incomodada por sua 'deficiência' era a Sociedade, e não ele.


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PESSOAS-CISNES:.
De tudo isso o que ficou foi que: "Nada substitui os cinco sentidos e o contato direto na percepção de outra pessoa", e, principalmente, na capacidade de apreciação da profundeza dos sentimentos que circulam entre eles. Vivemos num mundo onde tudo é editado. Descarta-se o lado imperfeito e escuro da vida, para apresentar somente o que convém. Quando hoje alguém se apresenta, já vêm mascarado, portando somente uma parte de si mesmo - e é comum a frustração e decepção quando, no dia-a-dia, descobrimos o quão distante daquela realidade apresentava está a pessoa que agora se mostra quase completa. Relações ilusórias, mostram somente as qualidades, forjam muitas, exageram outras, escondem os defeitos embaixo do tapete, e enchem a vida de luz com promessas e atos "que parecem" habituais. Mas trata-se de estratégia de conduta, adequada ao papel que estes serem vivem. O que tem os normais que se diferenciam tanto dos "patinhos feios", os diferentes, rejeitados pela sociedade? Sinceridade. Humildade. Cisnes em pleno vôo. Abertos e completos - são o que são, e fazem o melhor com o que a vida lhes proporcionou. Uma pessoa-cisne, como Tejon coloca, prova sua capacidade, mesmo que todos digam que ela "jamais será igual", demonstra por resultados que "ser diferente também pode provocar sucesso e felicidade". Vontade e fé absoluta em si próprias: não fingem, vivem o papel que foi destinado a elas aqui. Por isso alçam vôo, enquanto a maioria - normais, robotizados, caminha lentamente, "vendo somente" com olhos de "especialista e neurologista", donos da verdade. Quem é diferente sofre represálias, e tem um monte de obstáculos. Pra terminar, Ludwig: "Nada é tão difícil quanto não se enganar a si próprio". Tanta gente realmente acreditando na história que contam à outros... forjando roupas e palavras, querem aparentar ser o que inventaram. No final da noite, o espelho mostra a outra face, geralmente na convivência com a pessoa que está ao seu lado. Para quem precisar, a receita é: O vôo dos Cisnes, do Tejon, inspiração para todos que se sentem patinhos feios diferentes.

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