sexta-feira, maio 19, 2006


Incipit vita nova:.

"Se os mitos são as narrativas tradicionais da interação de Deuses e humanos, um relato dramático das ações dos daimones, então nosso modo de descobrir os Deuses em nossas vidas concretas é entrando nos mitos. Entrar nos mitos significa reconhecer nossa existência concreta como metáforas, como representações míticas.”
James Hillman


Dante foi um dos que, literalmente, cuspiu para cima e experimentou a saliva cair em sua face - foi apoderado pelo poderoso "demônio" tão desdenhado, arrebatado às profundezas do inferno pelo daimon chamado Amor, como Platão colocava. Após ter visto Beatriz, Dante imaginou sua vida completamente metamorfoseada: "Pus os pés naquela parte da vida além da qual se não pode ir com a intenção de regressar". O amor que ele tinha, pelos seus escritos, parece ser do tipo "idealizado, platônico, contemplativo, além-da-carne". Talvez tenha experimentado o tal do amor "ágape", o único real e que eleva o ser-humano em direção ao belo, onde o contato sexual é nada, perto do contentamento da alma ao ficar perto da amada, lhe dedicando sua vida. "Amor de olhos", com canção própria. Através deste Amor, vivencia-se o outro e, ao mesmo tempo, vivencia-se a nós mesmos. Se Dante o teve por Beatriz, não sei. Para mim, "romanticamente belo" a existência de um amor incondicional, denominado Ágape, pelo qual a vida se torna todos os dias esperança, em razão de outra existência. Fernando Pessoa, em um de seus poemas, Eros e Psiquê, tenta traduzi-lo em versos, através de uma lenda grega.

"Conta a lenda que dormia
Uma princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.”

Eros e Psique, pela lenda e pelo poema, são necessários um ao outro, o Amor à alma pertence. Eles se completam e se requerem um ao outro durante nossa vida; portanto não podemos ver nada sem estarmos envolvidos sentimentalmente - não podemos amar, nem estarmos envolvidos com qualquer coisa sem ele entrar em nossa alma. Ao experimentar em sentimento e desejo o Amor, nos sentimos completos. Por mais absurdo que esta teoria "do Ser completo" seja. Aqui, a Princesa Adormecida precisava ser retirada de seu sono, e o Infante lançou-se à estrada instintivamente, pois não sabia qual era sua meta, impulsionado pela força de Eros. Ao despertá-la, descobriu que estava acordado também. "Este mito retrata, escreveu Hillman,a interação de eros e psique como um ritual que hoje tem lugar entre as pessoas, e dentro de cada um". Por este motivo quando amamos nos alertam para mantermos os olhos bem abertos - o deus do Amor, Eros, já foi representado como sendo um cego ou estando vendado. Acima de tudo, o sofrimento do amor conduz o indivíduo a vivenciá-lo como um verdadeiro poder divino e daimoníaco, que transcende seus desejos egóicos, lançando-o em um movimento de aprofundamento, tanto com o mundo exterior quanto com sua alma. "Qualquer coisa que se possa dizer, nenhuma palavra expressará o todo. Sendo uma parte, o homem não pode compreender o todo. Ele está a sua mercê. Pode concordar com isso, ou se rebelar contra isso; mas ele é sempre pego pelo amor e fechado dentro dele. Ele é dependente e sustentado ", argumentava Carl Gustav Jung.

Não, não é fácil falar, explicar ou sentir "o amor", pois o desejo de controlar o sentimento que nos apodera sempre é mais forte. Também é incontroverso admitir que há dentro de nós tal força; e se não houver retribuição, tendemos a esconde-lo por debaixo dos panos, nas gavetas, e no nosso íntimo, pedimos e imploramos que ele se vá... para podermos nos livrar das correntes da maldição. Amor à primeira vista. Amor antecedente, por um retrato. Amor que espera, até a outra pessoa estar livre e desperta para vivenciá-lo. Só quem já viveu, acredita no coração e nos desígnios estapafúrdios que ele muitas vezes nos lega. Como diria minha bisavó: "Deus escreve sempre certo, nós é que vemos tudo torto".

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