Meu filho e sua equipe tinham um trabalho biográfio para o semestre: à eles coube a pesquisa sobre o Mito John Lennon, o gênio e sua banda Beatles, como e quando conquistaram o mundo. Bem, depois que eles fizeram tudo [aquela coisa mitológica em cima de um cara, só elegias e virtuosidades], busquei o livro da Rosa Montero, Paixões, e terminei com a conclusão: "Atrás de todo armário, sim, há ossos escondidos. Procure a sombra, quando tudo estiver muito claro...". Só o escuro, direto do livro, transcrevo aqui... A radiante história e conto-de-fadas que eles aparentavam viver já está bem discorrida na net.
No armário de John Lennon:.
"Lennon fora um menino muito infeliz. Nascido em 1940, seus primeiros anos transcorreram em plena guerra; seus pais, Julia e Fred, se separaram muito cedo e, além disso, tudo indica que eram um par de irresponsáveis. Quando John tinha 5 anos, Fred, que trabalhava como garçom num transatlântico, quis levar o menino com ele; mas John preferiu ficar com a mãe. Só voltou a saber de seu pai 16 anos depois (o homem reapareceu, que suspeito, quando John se tornou um famoso beatle). Julia, por seu lado, traiu o menino: abandonou-o nas mãos de sua rígida irmã Mimi e foi embora com outro homem, com quem teve duas filhas.Viviam a cinco quilômetros de Mimi e de John, e o menino às vezes via sua mãe chegar para visitá-lo com o rosto sangrando por causa das surras que o marido lhe dava. Apesar de tudo, John adorava essa mãe esquiva, que morreu atropelada por um carro quando ele tinha 18 anos. "Mãe, você me teve/ Mas eu nunca te tive/ Eu te quis/ Você não me queria", escreveu John, anos depois, em sua dilacerante canção Mother. Tudo isso o transformou num menino feroz. Aos 5 anos e meio foi expulso da creche por aterrorizar uma menininha. Era cruel, encrenqueiro, violento. Tinha dentro de si tanta agressividade e tanta dor que, aos 10 anos, pensava de si mesmo que "ou era um gênio ou estava louco". Já nessa tenra idade fazia coisas estranhas como olhar-se fixamente no espelho durante uma hora até seu rosto se decompor "em imagens alucinantes". Foi um menino, e depois um adulto, tragicamente dividido, com infinitas personalidades em conflito. Havia nele tendências paranóicas, egocêntricas e megalomaníacas, provavelmente porque sempre esteve à beira da mais absoluta aniquilação, ou seja, tinha que lutar diariamente para continuar sendo alguma coisa chamada John Lennon, ou corria o risco pavoroso de não ser nada. Para John, enfim, a busca da "autenticidade" (de um Lennon real que estivesse mais além da indissociação e da dor) era uma questão de vida ou morte. Mas o buraco negro só aumentou com o tempo.
Primeiro tornou-se um adolescente valente que maltratava os frágeis. Em seguida, aos 17 anos, uniu-se a Paul McCartney, que tinha 15, e a George Harrison, que tinha 14, e montaram a primeira banda. Pouco depois John já havia se tornado alcoólatra. Entupia-se de anfetaminas e passava o dia todo bêbado. Tinha acessos selvagens de violência: era um homem a quem todos temiam. Albert Goldman, autor de uma monumental e polêmica biografia de Lennon, chega a dizer que, durante sua permanência em Hamburgo (esteve com Paul e George tocando num clube da Reeperbahn, a famosa rua da prostituição), John surrou e roubou vários marinheiros; e que deixou um deles tão ferido que sempre temeu tê-lo matado. Seja ou não verdadeira esta truculenta história, a verdade é que a
violência o acompanhou durante toda a sua vida. Dava surras nas mulheres, e em uma festa quase liquidou um DJ: quebrou o nariz, a clavícula e três costelas do sujeito porque lhe havia perguntado se tinha uma relação amorosa com seu manager, Brian Epstein. A ferocidade de John só diminuiu durante os anos em que esteve dependente do LSD (entre 1966 e 1968 tomou mais de mil ácidos), mas essa calma, ou melhor, esse estupor tampouco parecia recomendável. A vida de John foi uma comovente e constante luta contra sua própria violência, que era uma coisa que espantava a ele próprio. Em 1974, durante breves meses de relativa paz e desintoxicação, Lennon disse a um jornalista: "Lembro que na escola quebrei o vidro de uma cabine telefônica a socos, ou seja, havia uma espécie de lado suicida e autodestrutivo em mim que está se resolvendo para o bem, creio, à medida que fico mais velho, pois a verdade é que isso nunca me agradou. Não gosto de acordar e pensar: "O que aconteceu? Matei alguém?'".
John conheceu Yoko no final de 1966, ao visitar uma galeria em Londres onde ela estava expondo. Lennon tinha 26 anos, estava no auge do seu êxito como beatle, fazia três dias que não dormia e estava viajando em ácido. Yoko tinha 33 anos, há 15 tentava vencer como artista sem conseguir e tinha fama de ser implacável na hora de se aproveitar dos outros em benefício próprio. Certamente começou a perseguir Lennon desde o primeiro dia. Yoko Ono deve ser uma das pessoas com pior imagem que há na Terra. A grande maioria das opiniões sobre ela é tão radicalmente negativa que chega a ser difícil acreditar. Foi qualificada de ambiciosa ao extremo, de dura, violenta e egocêntrica; de calculista e insensível. "É uma pedante insuportável", dizia dela Truman Capote: "a pessoa mais desagradável do mundo". Ono se considerava uma artista genial e reivindicava para si a criação do Flower Power, do happening e da arte conceitual; segundo ela, seu imenso valor não havia sido reconhecido por causa do racismo e do machismo. A obra de Ono não parece grande coisa: pequenas engenhosidades conceituais como fazer um quadro com um buraco no meio através do qual ela apertava mãos; happenings que consistiam, por exemplo, na aparição de Yoko em um cenário, vestida de preto e com umas tesouras grandes para que os espectadores fossem cortando suas roupas em pedacinhos; filmes vanguardistas como Bundas (retratos de 365 traseiros de pessoas) ou Sorriso (55 minutos com a cara de John Lennon mostrando a língua e sorrindo); e discos sofríveis e insuportáveis recheados de gorgorejos. Mas ela devia ter alguma razão quanto à discriminação por ser mulher e oriental, pois outros artistas atingiram o estrelato sem fazer muito mais que isto.
Ono havia estudado nos Estados Unidos, mas pertencia à aristocracia japonesa. Seu avô tinha sido o fundador do Banco de Tóquio; seu pai estava à frente do Banco do Japão. Vindo como vinha de uma cultura extremamente sexista em que as mulheres não tinham nenhuma oportunidade, deve-se reconhecer em Yoko o mérito de sua própria intrepidez e de sua rebeldia. Casou-se com um compositor japonês de vanguarda; separou-se dele; quis se suicidar; foi internada num hospital psiquiátrico no Japão; casou-se com Tony Cox, um aventureiro norte-americano; teve com ele uma filha, Kyoko, que era deixada de lado... Assim iam as coisas quando conheceu John, que, por sua vez, estava casado com Cynthia e tinha um filho, Julian, aos quais dava pouca atenção. Acho que Yoko deve ter sido uma mulher tão dividida quanto Lennon: com a diferença de que seu desequilíbrio era mais feio, mais antipático. Talvez Aspinall, o agente de turnês dos Beatles, tenha expressado o que a maioria pensava quando a definiu como "essa louca senhora japonesa". Naturalmente, os primeiros momentos de sua relação foram marcados pela loucura. O fabuloso sucesso dos Beatles havia piorado, como era de se prever, a angústia de John (a fama é um jogo de espelhos deformantes), e as drogas tinham arrasado o que sobrava de equilíbrio. Enquanto Paul McCartney evoluía, aprendia novas formas musicais e conduzia os Beatles rumo ao rock de vanguarda, o genial John se bloqueava e afundava no marasmo.
Então, em 1968, apareceu o Maharishi Mahesh Yogui, um guru indiano, e num piscar de olhos os lisérgicos Beatles se tornaram seus seguidores a ponto de irem até a Índia atrás dele para praticar meditação. Poucos meses depois descobriram que o guru os enganava: dormia com suas seguidoras, aproveitava-se do dinheiro de seus fiéis... Em seu desencanto, John, que havia permanecido limpo de drogas durante a aventura espiritual, tomou um coquetel brutal em seu regresso a Londres: ácido, álcool, anfetaminas e speedball (uma mistura de cocaína e heroína). Seus miolos fritaram e de repente acreditou que era Deus; de modo que convocou uma reunião formal com todos os beatles e disse que havia descoberto que era Jesus Cristo e que a Apple (a companhia formada pelo grupo) tinha que emitir imediatamente uma nota à imprensa informando ao mundo sobre tão transcendental notícia. Os outros beatles concordaram (ninguém se atrevia a contrariar o violento John quando estava assim), mas disseram que se tratava de uma notícia de tal magnitude que a Apple precisava estudar com muito cuidado a maneira de torná-la pública. Depois da reunião, John voltou para casa; estava pirado e se sentia sozinho, porque Cynthia estava viajando; então chamou Yoko, com quem vinha dormindo clandestinamente havia algum tempo. Yoko chegou e não foi mais embora. Quando Cynthia voltou, descobriu que sua casa não era mais sua casa.
A história de John e Yoko não pode ser entendida totalmente sem contextualizá-la no tempo em que foi vivida: aqueles anos frenéticos em que tudo parecia ser possível. A realidade estava então em farrapos, e as drogas se encarregavam de autenticar essa destruição. Todo mundo estava chapado: na festa que o rolling stone Mick Jagger deu num clube londrino para festejar seu aniversário de 25 anos, o ponche tinha metedrina, e os bolos que os garçons serviam em bandejas de prata haviam sido assados com haxixe. As pessoas viviam no limite, à beira do abismo, procurando, do outro lado do precipício, alguma nova realidade capaz de ordenar o caos assombroso. Por isso John tentou com Maharishi; e depois com Janov, um excêntrico psiquiatra de Los Angeles que fazia seus pacientes rastejarem pelo chão e berrarem, em plena regressão, chamando mamãe e chupando o dedo. Em seguida ele e Ono flertaram com um hipnotizador que dizia ter contatos com extraterrestres; e por fim se meteram, pela mão de Yoko, com ocultimo, magia e bruxaria. Estiveram nessa durante os últimos cinco anos da vida de Lennon: e Yoko obrigava John a dar estranhas voltas ao mundo de tempos em tempos porque acreditava que esses vôos absurdos eram venturosos e atraíam boas vibrações para o viajante. E, como se não bastasse toda esta confusão, o pano de fundo era o telão do radicalismo: o pacifismo contra a guerra do Vietnã, o feminismo, o importante movimento reivindicatório dos negros, a luta contracultural por uma sociedade não-consumista e não-capitalista.
Hoje a maioria dos discursos da época soa ingênua, mas é certo que coisas incríveis foram conseguidas: em Ann Arbor (Estados Unidos), ou em Cristiânia (Dinamarca), os hippies chegaram aos governos locais. Criaram-se negócios cooperativos, hospitais, supermercados, lojas de roupas nas quais não se pagava com dinheiro, mas cada um se servia de acordo com suas necessidades e pagava com trabalho ou com o que pudesse. Durante um breve período, enfim, parecia que sonhar era uma maneira de mudar o mundo. John e Yoko participaram à sua maneira de toda essa febre, naquele excesso geracional ao mesmo tempo magnífico e pueril. Por exemplo, fizeram vários happenings que consistiram em passar uma semana inteira na cama e ali receber os jornalistas para falar da paz. É claro que, sobre este tema, John e Yoko não tinham nada especialmente inteligente para dizer. Por exemplo, ao falar sobre a guerra do Vietnã em 1968, John disse: "É outra mostra de loucura. É mais um aspecto da loucura da situação. É simplesmente uma loucura. Não deveria continuar. Não há razão para isso. Só loucura." Era um pouco assustador ver John Lennon, tão sarcástico, ácido e agudo em seus comentários quando jovem, transformado numa espécie de paspalho bobalhão repetindo junto com Yoko os ingênuos clichês da paz e amor. Talvez Yoko Ono (que carecia completamente de senso de humor) fosse abrasiva para ele; ou talvez fossem os estragos do álcool e das demais drogas. Parece que, quando começaram a viver juntos, tanto John quanto Yoko já eram viciados em heroína. Logo ficaram dependentes de metadona, à qual haviam recorrido para se desintoxicar da heroína, sem saber que essa nova droga também viciava. Houve períodos em clínicas, e esforços constantes e infrutíferos para se livrar da dependência: em uma ocasião, John mandou que o amarrassem a uma cadeira durante três dias: "Trinta e seis horas/ Retorcendo-me de dor/ Implorando a alguém/ Que me libere de novo/ Oh, serei bom rapaz/ Por favor, cure-me/ Te prometo qualquer coisa/ Tire-me desse inferno/ A rebordosa vem me perseguindo", disse Lennon em sua aterrorizadora canção Cold Turkey (literalmente "peru frio", que é como os ingleses chamam a rebordosa ou síndrome de abstinência). Parece que, durante o resto de sua vida, John ficou entrando e saindo da heroína, bem como de ferozes depressões que o mantiveram durante seis anos na cama, praticamente sem se levantar e quase sem comer, porque sofria de transtornos anoréxicos. Yoko também passou por suas fases de depressão, mas em geral parecia afundar menos que ele, talvez porque tenha sido impulsionada pela ambição de vencer e pela raiva de não conseguir (os discos que fizeram juntos foram um desastre), ou talvez porque fosse mais forte. John chamava Yoko de Mãe; e sem dúvida precisava mais dela do que ela dele. Seja como for, viviam grudados um no outro, alimentando uma fantasia de identidade. "Depois de tudo ter sido dito e feito, nós dois somos realmente um. Os deuses sorriram sobre nosso amor, querida Yoko", escreveu John em seu último disco. Repetiram e tornaram a repetir até o fim que eram iguais, que eram almas gêmeas e que se adoravam, talvez tentando acreditar nisso, uma vez que a extrema esquisitice de alguém não é tão dolorosa nem tão louca quando há outro igual. Mas, por outro lado, tinham brigas terríveis; Goldman diz que de vez em quando davam surras espetaculares um no outro e passavam semanas sem se falar.
Em 1973, John largou Ono e foi embora com May Pang, sua secretária, uma jovem chinesa encantadora (enquanto Yoko, por sua vez, perseguia outro homem). Os nove primeiros meses foram um inferno: totalmente bêbado, John brigou com fãs, foi expulso a pontapés de vários locais, partiu a cabeça de seu guitarrista, mordeu o nariz de um músico, destruiu vários apartamentos e tentou estrangular May Pang meia dúzia de vezes com insistente empenho. Mas os nove meses seguintes foram um oásis. Lennon se acalmou, diminuiu radicalmente o consumo de drogas e empreendeu uma vida doméstica e amorosa junto com a suave May. Iam comprar uma casa juntos quando Yoko reagiu e prendeu John de novo em sua teia. Aquela estranha relação voltou a fechar-se sobre eles, tão interdependente e tão teatral: Yoko vivia instalada no happening, na representação de sua felicidade familiar das portas para fora (em 1980 contratou um avião para escrever com fumaça, sobre Nova York, uma mensagem de aniversário para John e Sean, o filho de ambos), mas dentro de casa o dia-a- dia continuava sendo turbulento, e há testemunhos de que, na época da morte de John, o casal caminhava para o divórcio (ainda que o mais provável é que isso não seja verdade: há relações cuja aderência aumenta com a deterioração). John morreu após ter levado quatro tiros no dia 8 de dezembro de 1980, aos 40 anos, sem haver alcançado a autenticidade, mas também sem haver se fechado em sua dolorosa busca: essa foi sua maior grandeza, seu heroísmo privado. Seu assassino, Chapman, era um palerma de 25 anos, um filho do LSD atrás de seus 15 minutos de fama. No dia seguinte ao assassinato, Yoko fez com que montassem às pressas uma gravação com palavras de Lennon, e com isso compôs o lado B do single que estava lançando. Este foi, por certo, o único trabalho de Yoko Ono que chegou a vender maciçamente.
O fato é que John Lennon queria ser "autêntico". A aspiração à "autenticidade" foi um dos lugares-comuns mais estendidos na época da contracultura e do hippismo, ou seja, no final dos anos 1960 e início dos 1970. Os filhos das sociedades ricas, liberados dos problemas mais prementes, ficaram em condições de perceber que se sentiam alienados pelo mundo consumista e pós-industrial; e o uso das drogas psicodélicas intensificou seu estranhamento com relação ao mundo. Era necessário voltar às origens, resgatar o indivíduo real e bondoso (o hippismo foi um movimento cândido) que estava sepultado sob as misérias burguesas. All You Need is Love, diriam os Beatles, tudo o que você precisa é de amor, e esse amor nos faria voltar ao paraíso. Mas o estranhamento de John em relação ao mundo vinha de muito antes e do mais profundo de seu ser. Vida Louca: fama e fortuna.
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