terça-feira, março 14, 2006


Vade Mecum:.

"Todos os seres humanos passam a vida buscando o seu particular ponto de equilíbrio... Quando traímos a nós mesmos, quando nos curvamos, quando nos vendemos, somos duplamente notórios em nossas atrapalhadas. (...)Aliás, desconfio dos puros: eles me apavoram. Dessa pureza fictícia nascem os linchadores, os inquisidores, os fanáticos. Não se pode ser puro sendo humano, de modo que devemos se adaptar... Às vezes a mesma pessoa pode apresentar comportamentos diferentes: pode ser heróico frente a alguns desafios e miserável em outros. O celebérrimo manifesto de Zola a favor do judeu Dreyfus sempre é citado como exemplo do compromisso social e moral do escritor, e sem dúvida, Émile precisou ter coragem para escrever seu iracundo Eu Acuso quase absolutamente sozinho contra os bem-pensantes. Mas nunca se recorda que, três anos antes, esse mesmo Zola negou-se a assinar um manifesto de apoio a Oscar Wilde, condenado a dois anos de cadeia nas desumanas prisões vitorianas só por ser homossexual. Mas, naturalmente, defender naquela época um sodomita, como eram chamados, era ainda mais difícil que defender um judeu, e demonstrava uma liberdade intelectual muito maior. Henry James também não assinou: só André Gide o fez, talvez porque compreendesse o drama de Wilde, já que também era homossexual(...)Na verdade o que atrapalhou Zola foi o preconceito; ... por isso minha preferência por Voltaire."

A Louca da Casa, Rosa Montero.


:::


Lendo esse trecho no livro, que não está "citado ipsis literis", me vem a mente o dia da mulher. Quantas manifestações gloriosas, quanta falácia e desilusão. Porque um dia para as mulheres, isso eu não compreendo. Eu sou dona de todo ano; porque a história da minha vida sou eu que escrevo. Geralmente, quem sai em defesa dessas metáforas anacrônicas e ilusórias são fanáticos: acreditam que tendo um dia para a manifestação, podem se revelar. As feministas, que vão a rua, por direitos iguais... O que elas deveriam explicar minuciosamente é que a "igualdade" não existe do modo como projetam - há o que chamamos "uma busca pela igualdade entre desiguais". Porque jamais existirá Igualdade Real; posto que é ficta. Sempre haverá alguém com mais capital, mais inteligência, mais dom, mais talento, mais cultura, mais herança familiar. Uma mulher é um ser humano, com iguais capacidades para o trabalho laboral - ou seja, há muitas que são péssimas para qualquer atividade, outras se sobressaem em qualquer nicho de mercado. O que não existe são igualdades de condições de trabalho. Porque a Mulher é mãe; e sendo assim, metade de si estará sempre ausente, zelando e cuidando dos que gerou. Também é esposa; e uma parte precisa ser quase-perfeita nesse quesito, para que nenhuma "Bruna Surfistinha" depois lhe preguem que "deveria ter cuidado melhor de seu homem ou de si". É a matriarca da família, e com isso a responsabilidade da educação e da condução do lar é sua. Geralmente a limpeza é sua carga extra, nos finais de semana, e embora haja aqueles que dividem tais atos, um homem para lavar é uma coisa, na hora de secar e guardar já se evaporou. E foi no dia das Mulheres que uma mãe deixou em sua casa de madeira, num bairro pobre, suas três filhas - sete, cinco e três aninhos, dormindo. Estava quente aquela madrugada, e, preocupada, ligou o ventilador, imaginando proporcionar melhor sono para seus anjinhos. Ela entrava as 4hrs da manhã no trabalho, e, não, não era prostituta, nem saiu para "dar", como alguns apregoaram. Indústria do Frango, turnos ininterruptos... foi o que conseguiu pra sustentar sua prole, tarefa que exercia sozinha. É, entre as conquistas das mulheres, essa foi a maior conseqüência: ser integralmente responsável. Às sete horas havia bombeiros na frente de sua casa, a imprensa e um bando de vizinhos (que não sei como, só naquele momento acordaram), pra ver o estrago que havia feito uma faísca elétrica, um ventilador ligado. Não, não houve nenhum anjinho salvo, porque a demora foi excessiva; e a casa, tão pequena... de madeira. No dia das Mulheres, essa mulher recebeu a notícia de que a conquista e luta por direitos iguais, pelo seu direito de trabalhar e labutar sozinha pra sustentar 3 filhas, lhe tinham concedido um dever: o de prestar esclarecimentos sobre possível negligência quanto a criação de seus filhos. Porque elas estavam mortas. E ela devia contar que a babá, que chegava as sete horas, não podia começar antes. Também tinha os seus... sua família. Qual é o amparo que o Estado dá a estas mulheres, excluídas da Sociedade?

Eu nunca comemorei esse dia da Mulher; tão falso como ganhar anel de zircônia, imaginando brilhante. Como os índios, negros, deficientes e paupérrimos, as mulheres com filhos, numa situação assim, deveriam ter também uma lei que as diferenciasse e as igualasse as outras, que detém babás e lar estável pra poder trabalhar. Todo serviço público deveria ter sua cota para elas, como para as outras minorias. Todo horário decente deveria ser oferecido prefencialmente a estas; para que se evitasse mais tragédias. Uma lei que amparasse essa minoria, indefesa mais e mais a cada dia. Discriminada na hora da contratação, por ter filhos. Preterida. E aí perguntam porque tantas mães estão deixando os filhos recém-nascidos nas ruas. De repente para os pais os proverem, e para que não haja nenhum contato, nem convívio. Para que elas possam ser tão livres como eles. Já que não lhes é permitido opção pelo aborto, pois o corpo não lhe pertence. Qual é a igualdade existente para essas minorias dentro de uma faculdade, estudando a noite, com crianças pra cuidar, sozinha e ainda responsável para trabalhar e sustentar sua família?

*Quem sabe essa atitude de viver um pé atrás de tudo - do amor, do clímax, da vida, não era porque nunca havia vivido livre, mas sim presa a grilhões, que mudavam constantemente de mãos? maridos, filhos, manter um "eu"conveniente para cada momento. Natureza difícil, financeiramente dependente*. Oh, sem Voltaire por nós, resta orar, coisa que toda mulher aprende, desde pequena... Ave-Maria, gratia plena, dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus et benedictum frutis ventri tui Jesus. Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis, minoria desamparada, nunca et ora nostrae morte. Amem.


*Lispector.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial