quarta-feira, março 15, 2006


Credere:.

Falei Credere, li Credence. Um representa todo o meu ritual em busca de um sonho, provém do latim e significa ter confiança (em mim!), e emprestar em confiança (muitas coisas nem o Master, muito menos o Visa compram! rs); o último me traz uma lembrança tão boa, de uma amiga que amava essa banda. Eu entrava com o carro, ela com os CDs. Credence, ABBA (aquele filme da Muriel era magia pura pra fazer a gente se matar de rir) e uma música que lembro da melodia, sei qual é, mas esqueci a banda. É, eu esqueço os nomes, fico com a parte profunda. Aquilo que me tocou. Escutei essa música um milhão de vezes, herdei o CD de tanto que ficava no "Ogromóvel", e agora ela foge...Certas pessoas se fixam em algo - muitas ao meu redor são enraizadas em uma única música. Beatriz é um caso pior, conjuntamente com uma prima, que só cantava da música da Vanessa da Mata o refrão: "um banho de chuva, um banho de chuva". Praia, Sol, e o refrão. Apartamento minúsculo, cansaço, e o refrão. A mesma coisa ocorre com a minha menininha agora - ela acorda olhando pra mim e dizendo: "eu gosto de você, eu gosto de você, eu gosto de você..." No jantar, num-de-repenteco, ela falou rapidamente: "Daiana, eu quero o Ben". Deixei passar - não sei se ela confundiu o Ben (da novela que nem assisto bang-ban) com o Ken (marido divorciado da Barbie, que não existe em nenhuma loja, porque fugiu da praça pra não ser capturado novamente pela boneca); ou o que é pior - ela achar aquele cowboy bonito, começar a idealizar e de repente, como em magia e sedução, terei um genro grosso, barbudo e sujo. Se eu fosse a Daiana, tomava cuidado: ela sempre consegue o que quer. Nem que seja chorando bem alto, até que os tímpanos do meu ouvido peçam clemência, e eu, candidamente, me ajoelhe a sua frente, e decida barganhar com suas lágrimas. "Você brigou comigo, mamãe". É, nem eu conseguia ser tão perfeita quando criança...

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Porque ainda preciso das palavras dos outros. Adoro a metáfora e a surrealidade exposta dessa maneira. Se não é o que eu disse, desista. Eu me convenci, e pronto.

(...) Burrice pega mesmo. De tanto eu mentir para ser da mesma opinião dos outros, porque não adianta contrariar, fiquei lesa. Confundi as falsas moedas com moedas verdadeiras.. Na verdade o que eles são mesmo é: best-sellers...As opiniões deles são best-sellers, as idéias deles são best-sellers. Acrescente-se a isso a falsa modéstia dela, uma vontade de ser mártir, e uma vontade best-seller de ser vítima e de ter angústias. Acresce-se a isso que ela me procura tanto que já não agüento. E de manhã, de tarde, de noite. Uma coisa que se diga a ela, fere a susceptibilidade dela, e ela passa a noite chorando! Ela é sofisticada. Fala-se de artistas bonitos ou atraentes de cinema, ela diz com ar de Greta Garbo: nunca reparei se um artista é ou não bonito, só presto atenção no trabalho. Muito chato, meu Deus... (Essa expressão best-seller ligada às pessoas em geral é invenção de Ceschiatti, que vive descobrindo expressões perfeitas em relação às coisas).
Uma carta de Berna para as irmãs, sobre a vida no meio diplomático e os diplomatas ou suas esposas, de Clarice Lispector.


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(...) perdi alguma coisa que me era essencial,e que já não me é mais.Não me é necessária,assim como eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável.Essa terceira perna eu perdi.E voltei a ser uma pessoa que nunca fui.Voltei a ter o que nunca tive:apenas as duas pernas.Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar.Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta,era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma,e sem sequer precisar me procurar. Estou desorganizada porque perdi o que não precisava?Nesta minha nova covardia - a covardia é o que mais de novo já aconteceu,é a minha maior aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la- na minha nova covardia,que é como acordar de manhã na casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir.É difícil perder-se.É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar,mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo.Até agora achar-me era já ter uma idéia de pessoa e nela me engastar:nessa pessoa organizada eu me encarnava,e nem mesmo sentia o grande esforço de construção que era viver.A idéia que eu fazia de pessoa vinha de minha terceira perna,daquela que me plantava no chão. Mas, e agora? Estarei mais livre? Não. Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de novo penso porque tenho por objetivo achar- e que por segurança chamarei de achar o momento em que encontrar um meio de saída.Por que não tenho coragem de apenas achar um meio de entrada? Oh, sei que entrei, sim. Mas assustei-me porque não sei para onde dá essa entrada.E nunca antes eu me havia deixado levar,a menos que soubesse para o quê. Ontem,no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem,eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero simplesmente ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo,não sei me entregar à desorganização.Como se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação:a ser? E, no entanto, não há outro caminho. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? Como é que explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra- como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que ver é uma tal desorganização? E uma desilusão. Mas desilusão de quê?se,sem ao menos sentir,eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer a um sistema.

No entanto se deveria dizer assim:ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido.Ou que eu era antes, não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor:a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro.O medo agora é que meu novo modo não faça sentido?Mas por que não me deixo guiar pelo o que for acontecendo?Terei que correr o sagrado risco do acaso.E substituirei o destino pela probabilidade No entanto,na infância as descobertas terão sido como num laboratório onde se acha o que se achar? Foi como adulto então que tive medo e criei a terceira perna? Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder?perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que for achando.As duas pernas que andam,sem mais a terceira que prende.E eu quero ser presa. Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir.Mas enquanto eu estava presa,estava contente? Ou havia, e havia.aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira?ou havia, e havia, aquela coisa latejando, a que eu estava tão habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa. É? Também,também. Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação humana. Não sei se terei uma outra para substituir a perdida. Sei que precisarei tomar cuidado para não usar sub-repticamente uma nova terceira perna que em mim renasce fácil como capim,e a essa perna protetora chamar de "uma verdade". Mas é que também não sei que forma dar ao que me aconteceu.E sem dar uma forma,nada existe. E - e se a realidade é mesmo que nada existiu?!quem sabe nada me aconteceu?Só posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo- o que sei do resto?o resto não existiu!Quem sabe me aconteceu apenas uma lenta e grande dissolução?E que minha luta contra essa desintegração está sendo a de tentar agora dar-lhe uma forma?Uma forma contorna o caos,uma forma dá construção à substância amorfa- a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos,mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e fomes- então ela não será mais a perdição e loucura:será de novo a vida humanizada. A vida humanizada.Eu havia humanizado demais a vida. Mas como faço agora?Devo ficar com a visão toda,mesmo que signifique ter uma verdade incompreensível? (...) talvez o que me tenha acontecido seja uma compreensão- e que ,para eu ser verdadeira,tenho que continuar a não estar à altura dela,tenho que continuar a não entendê-la.Toda compreensão súbita se parece muito com uma aguda incompreensão. Não.Toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão.Todo momento de achar é um perder-se a si próprio.Talvez me tenha acontecido uma compreensão tão total quanto uma ignorância,e dela eu venha a sair intocada e inocente como antes.

(...)Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em diração ao que não conheço:minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria.Não eram as antevisões da visão:Já tinham o tamanho dos meus cuidados.Minhas previsões me fechavam o mundo. (...)Estou tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se imaginar que alguém me está dando a mão. Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria.Muitas vezes antes de adormecer - nessa pequena luta por não perder a consciência e entrar no mundo maior- muitas vezes,antes de ter a coragem de ir para a grandeza do sono, finjo que alguém está me dando a mão e então vou,vou para a enorme ausência de forma que é o sono.E quando mesmo assim não tenho coragem,então eu sonho. Ir para o sono se parece tanto com o modo como agora tenho de ir para a minha liberdade.Entregar-me ao que não entendo será pôr-me à beira do nada.Será ir apenas indo,e como uma cega perdida num campo. Essa coisa sobrenatural que é viver.O viver que eu havia domesticado para torná-lo familiar. (...)A verdade não faz sentido,a grandeza do mundo me encolhe.Aquilo que provavelmente pedi e finalmente tive,veio no entanto me deixar carente como uma criança que anda sozinha pela terra.Tão carente que só o amor de todo o universo por mim poderia me consolar e me cumular,só um tal amor que a própria célula-ovo das coisas vibrasse com o que estou chamando de um amor. Daquilo que na verdade apenas chamo mas sem saber-lhe o nome. Terá sido o amor o que vi? Mas que amor é esse tão cego como de uma célula-ovo? (...) por que não digo nada e apenas ganho tempo?Por medo; É preciso coragem para me aventurar numa tentativa de concretização do que sinto.É como se eu tivesse uma moeda e não soubesse em que país ela vale. (...)Eu me pergunto: se eu olhar a escuridão com uma lente,verei mais que a escuridão? A lente não devassa a escuridão,apenas a revela ainda mais. E se eu olhar a claridade com uma lente, com um choque verei apenas a claridade maior.

Clarice Lispector

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