terça-feira, fevereiro 14, 2006


sandices de mar:.

No meu mundo de paixões e Amor Avassalador, a Revelação de algo nunca resultou de números ou equações lógicas; vêem como um raio, um vento misterioso, um Amor... Ou permanece para sempre à sombra do desejo. Tenho cá com os meus botões que o que desejamos ardentemente não é previsto - pode vir em uma hora, no próximo ano, pode ser que já esteja por perto, à escuta, à espera, à disposição, à espreita... Se atentos aos sinais e ao Momento, realizamos sonhos; senão... perdemos oportunidades de Ouro.

Lógico que para captar o instante com tal maestria "é necessário aquele grãozinho de loucura, a interrogação do nada, a intuição que faz uma criança estender a mão para tocar no novelo de poeiras e fios, imaginando nunca um alfinete, mas sempre uma estrela. Assim é, e foi - não vejo fase da minha vida onde a fantasia e a distração não tenham convivido entrelaçadas. O mundo parece querer sempre me dizer algo - nas árvores o vento, na chuva o silêncio, no perfume das rosas o amor que chegava... Até hoje, nos cantos da casa encontro os tumultos das sombras que apareciam, e somente eu via. Destas, mantenho até hoje convivência pacífica - muitas vezes ainda muitos pensam que eu falo sozinha, simplesmente estou "costurando" panôs com meus fantasmas enluarados...

Transformei-me assim, de menina peralta e sonhadora, nesse projeto de Adulta, integração precária, feito encantamento de alguma alma desastrada. Entre meus desejos e realizações hoje há muito mais do que um mar, há todo um Oceano, aqui dentro de mim, me separando do que quero, e daquilo que planejaram para mim. Vivo em duas canoas, completamente furadas agora, ao final da vida. O passado de uma me alimenta, e o presente da outra me sustenta...

Talvez pela lua cheia, já em câncer, sinto mais próximas as brumas da memória. Chegam de soslaio, e me envolvem, recordando os Tempos de minha bisavó, onde "para cada mal sob o sol tinha um remédio; se este não existia, não devia se preocupar com nada. Se houvesse, devíamos obstinadamente procurá-lo, desejá-lo, conquistá-lo". Inspirada nela foi que, nas ventosas tardes de março, ou nas noites de Agosto que, na varanda, em uma cadeira de balanço e mil histórias para relembrar, recolhia-me num mundo de fantasias. Retirava do bolso um surrado baralho cigano, escolhia a léu uma carta e começava as oferendas destinadas a saciar minha Alma.

Muitas vezes fiquei em dúvida se aquilo que eu estava ali, traçando, eram meras especulações, sandices de uma velha, ou atos reais e mal-acabados de meu bordado-Vida. Enfim, não me interessam muito os porquês, já estou no fim, o leite derramado não tem mais como limpar, virou em poça sangrenta com os fatos que vivi...

Recordo que foi numa noite úmida de agosto, com o vento sussurando por entre as árvores, que viajei dentro de uma melhores histórias. De Amor, desejo e paixão. Do quanto somos escravizados pelo desejo, e nos afastamos do Caminho do Amor, pois todos são disfarces de uma mesma natureza, e após algum tempo ficamos em dúvida a respeito de "qual é qual". Ficamos na sala, eu e meus fantasmas camaradas, dia de frio, coberta até os joelhos e chá quente na mão. Havia toda uma preparação ritualística para o começo das aventuras, como se eu precisasse "de conexão" para navegar naquele mar de dentro de mim. Ouvi uivos crescentes, e pela janela fui espiar - "ah, são apenas os velhos e conhecidos banshees, aqueles espíritos femininos que já vi e ouvi. Ficam por aí, se lamentando do lado de fora de alguma casa durante a noite, predizendo sempre a morte de uma pessoa da família. Por aqui, já passaram há muito tempo - e como sempre, levaram vida - de lá para cá ando num mundo tão cinzento, sem paixão, que me sinto desprovida do alento de viver."

Pego meu bordado, e começo a passear com a agulha nos diversos buraquinhos minúsculos, difíceis agora de enxergar, tentando traçar rotas coloridas, construindo cenários onde caibam fadas e bruxas, gnomos e duendes, amor e paixão. Principalmente, alegria e amor. Já que tudo ali era possível, é só imaginar e tecer! Olho para cima, e um sorriso surge quando as lágrimas começam a cair. "Muito tempo atrás meu pai disse que os chorões e os que peidam tem a mesma justificativa para o ato insano - dizer que se contermos lágrimas ou peidos, isto nos sobe pela cabeça, ou escoa para cima, cada vez mais alto, até que um dia esta explode, simplesmente". Não gosto de olhar para trás, mas agora é preciso. A carta é essa, para hoje: dos desejos que nos corrompem, e dos amores que nos buscaram, e que nós perdemos.

É. Tem gente que acredita que desejo e Amor são a mesma coisa. Tolice de quem só desejou, pois se algum dia tivesse dado com o pé na raiz do amor, teria ficado zonzo, tropeçado, jamais confundiria as caixas desses "remédios para a Alma". Mas na falta destes, com o tempo a gente se acostuma a viver na monotonia do cotidiano - depois desta história que agora coloco aqui, jamais pensei em encontrar Amor verdadeiro, e a vida para mim tornou-se "escovar os dentes, preparar o café da manhã, almoço, limpar o jardim, e fazer o jantar". Sem, é claro, deixar de lado a falsa animação. Enfim, dia-a-dia de alguém que, como eu, perdeu seu coração em determinada curva do caminho, e jamais voltou atrás para recolhe-lo.

Pois é, maldito orgulho que se apropria da Alma e do Corpo da Gente! Por causa dele pensei estar de posse de tesouro, quando tinha algo verdadeiramente sem valor; foi desse jeitinho que larguei aquilo que me sustentava, pela simples mesura de achar que aquee outro, chinfrin, velho e roto "não estava aos meus padrões". Esse mesmo orgulho reduziu-me a algo do tamanho de uma mosca, mas uma mosca sem cabeça, rabo ou asas, porque não consigo me erguer do chão. Fiquei ali, estatelada, de cara no assoalho, vendo o tempo passar por mim... Nem a cebola que costumo ingerir diariamente, para me chocalhar, e me fazer asperamente ver a realidade, adiantou.

Cresci ouvindo dizer que o caminho do Amor incluia achar alguém que me amasse em retribuição, saisse e dançasse a noite inteira, passear no escuro de mãos dadas. Nada disso adiantou para esquecer quem até hoje me enlouquece. Conselhos, bah, não me servem mesmo! Sou uma dessas pessoas que não podem ser advertidas para se afastarem da desventura. Pode-se tentar, pode-se oferecer todos os alertas, mas ainda assim, sigo minha própria mente e estratégia. Sempre fui dominada pelo desejo de Ter aquele que um dia Vi, na floresta, e agi como você deve estar pensando - com a bruxa dentro de mim. Pena que no auge do sentimento, da transmutação em amor, matei-a rapidamente, cortando sua garganta com meu athame afiadíssimo. Era preciso Athena, o mundo das Bruxas virou livro de histórias...

Eu, que recebia lições de cozinha há anos, esqueci a maior delas - seja cautelosa com o que desejar, pois alguns destinos são assegurados, não importa quem tente interferir. Por causa do meu ato, caí aos pedaços, e até agora tento colar-me, sem encontrar aquele que deve ser o coração. Este, tenho certeza, o diabo do moço de olhos azuis levou consigo, por eu hesitar, por eu ter escolhido segurança e lar. Por eu ter deixado passar o Amor, batido, e entrado na porta que me conduzia a paixão de algumas semanas, terminei na sala, prisioneira dum marasmo eterno. Pudera, o que eu pensei?

Que Amor era um brinquedo, uma coisa fácil e doce apenas para se divertir. Fui tola, idiota sim. Sabia que estava amando, e mesmo assim, achei que, conhecedora dos mistérios além-sem fim, podia me libertar dos laços que me prendiam... Sabem, o verdadeiro amor era perigoso demais, exigia tanta coisa, eu uma insegura e carente mocinha, só queria filhos e uma casa. Um lar! Mas à noite sentia ele me dominar por inteira, aqui dentro, me agarrava firmemente e revirava minhas entranhas, até que eu, num acesso de vômito, explodisse no piso, se não levantasse com rapidez para ir ao banheiro. Sorte ou azar, tive marido bondoso, que pensava tratar-se de doença crônica, me trazia chá na cama, e alisava meus cabelos até eu parar de chorar e entrar em sono profundo. Dizia que "iria com o tempo amainar"; o que ele não via é que o relógio só fazia crescer a tempestade ocêanica que jaz em mim. E aquela bondade, para mim nunca foi uma virtude, e sim falta de firmeza e medo, disfarçados como humildade. Seria tola se pensasse outra coisa do homem com quem vivi por todos esses anos! Pelo resto da minha vida vou ser seguida por alguém, por toda parte, que me ama mais do que a própria vida, e eu não consigo nem sequer mandá-lo embora. Cão sem dono, tenha piedade dos meus olhos que a ti volvei! E isso me deixa dolorida, por dentro e por fora.

Muitas vezes a coisa certa a se fazer torna-se depois de terminada e encerrada totalmente errada. Comigo foi assim...Num dia como esse agora, nessa mesma hora foi quando ouvi os banshees pela primeira vez. Encantada e tomada por aquela espécie de medo que nos faz destemidas e audaciosas, em vez de me esconder, saí para a floresta, a fim de esclarecer quem eram essas tais criaturas! E foi num clarão, num forte esbarrão que encontrei com os olhos daquele moço, tão límpidos como o Mar! Acho que foi exatamente nesse contato que o desejo infiltrou-se sorrateiramente em mim, transformando-me em algo muito tolo, como uma mosca que não pára de perseguir o mesmo cão velho.

A coragem inflamou-se em minhas veias, destemida, e ousei com ele ultrapassar tantos limites e tantas ondas quanto podia. Mais, achei que iria me afogar, não confiava nos braços seguros do amante enevoado. Nos amávamos como duas bestas selvagens, e também como dois casais de pombos, entre arrulhos e gemidos ternos; nos unimos certo dia propício, pela cerimônia da Agulha de Prata, onde cada um estendeu sua mão esquerda, e depois de picado o terceiro dedo desta, deixou-se pingar sangue com sangue, cruzando destinos, unindo corações. Porém, que imprudência - não exerci o papel de bruxa completa - não houve o zelo de guardar tecidos vivos do meu amado, como aparas de unhas, fios de cabelo, sêmen. Sabia que aquele era o Amado predestinado, não o somente desejado. E aquilo que é para nós destinado, nada no mundo toma. Esqueci da última linha - "A não ser nós mesmos..."

Com aquele homem, fiquei feito mulher-conjuro, vagando pela Vida, não há meios de dormir, descansar, conversar, trabalhar, sem pensar no derradeiro... Sei que só encontrarei a paz quando ele voltar, pois ali irei serenar, em seus braços. Mas, e quando esse dia chega? Já se passou tanto tempo, e não há volta... Repito toda a noite os movimentos de evocação do seu espírito, antes de ir para cama, crio pombas selvagens, solto-as com os devidos gestuais ancestrais aprendidos, mas continuo assim - sem o seu retorno e sendo devorada viva pelo Amor que perdi. Também pela culpa de ter Escolhido esse fado.

Após alguns meses meu pai descobriu nosso romance. Ficou em estado deplorável, exigiu que aceitasse a proposta imediatamente do nosso vizinho de Terras, pessoa rica e destinada por ele a mim desde que nasci. Choravam em casa o dia inteiro, e por certo tempo realmente não me importei com o que as pessoas diziam. Não importava nem o que poderiam dizer. Porém, insegura, cai na cilada de outra mulher - fui colhida pelos ciúmes: ao ver meu Amado conversando com a dona da Boate, de muito perto, muito íntimos, chegados assim, boca no ouvido, nariz aspirando o perfume do colo do seio... Fiz escândalo, ele me conteve, ela ria muito alto.

Não adiantaram suas súplicas e explicações. Muito menos seu amor esparramado aos meus pés: meu orgulho dizia que havia sido traída, e devia agora agir com a razão. Assegurar um caminho rapidamente para mim, uma rolha para tapar aquele "buraco negro" que já sentia-se enorme dentro de mim, sem limites como um Oceano. Seus protestos vãos enchiam a noite, varavam madrugadas, mas não olhei para trás. Acreditava que ser ruim quando as pessoas erravam era a glória dos Fortes; contudo aprendi que a ruína era o próximo passo - um abismo me esperava depois...

A última vez que eu o vi estava parado no "nosso jardim", num canto onde havíamos plantado limão-cravo, verbena e odorífera, tomilho e erva-cidreira. Colheu uma das viçosas peônias ali existentes, que protegiam contra o mau tempo, enjoo em viagens e também evitavam a entrada do mal à casa, juntou a alfazema à suas mãos, mais o confrei, pelo seu odor característico, e fez disso um buquê. Transpassou a distância que nos separava, já com lágrimas nos olhos e disse-me: "Nestas estarei sempre ao seu lado, mas já não posso fisicamente ficar aqui, vendo-te tomar outro rumo, se afastando de mim. Estou quebrado, meu mundo e sonhos acabados. Preciso sair daqui, fugir pra bem longe. De repente isso pode significar um novo rumo, e ter algo lá no fundo, a direção certa que me acolha e me conserte. Adeus".

Fiquei ali, em pé, sem pedir para ele voltar, nem pude segurar sua mão. À esta época estava casada, fazia poucos dias, algo decidido às pressas, num impulso, rompante vingativo de uma menina mimada. Jamais acreditei que sua fuga era uma viagem sem volta...

Enfiando a agulha no tecido, agora pelo avesso, termino o prosaico desenho de um carvalho em meio a um caminho limpo. Olho, admirada para ele, e concluo a história da noite: "Depois da decisão que tomei, selando a voz do coração e anestesiando minha pele que se enchia de tesão só de vê-lo, nunca mais nos encontramos. Eu e ele nos perdemos, de vez. E nem eu mesma me encontraria mais depois da partida do Amor.

Por isso quando o Amor acenar na janela, feito girassol amarelo-resplandecente, salte-a, rompa barreiras, percorra kilômetros, mas vá. Voe até lá, se não for possível outro meio, use a vassoura. E jamais deixe que o monstro do Orgulho te rodeie, em círculos. No final, nunca adormeças sua Bruxa, despertando somente a Princesa Encantada, esquecendo dessa forma de ser precavida. A coleta faz parte do nosso mundo - comece no início a guardar aparas das unhas do Amor para que, numa fatalidade talvez, você possa chamá-lo rapidamente... Pois nem nos contos de fadas de hoje os finais felizes são para sempre.

Histórias de Beatriz: Pra gente poder ser feliz sem aquele triz.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial