domingo, janeiro 15, 2006


Budapeste:.

Um eterno dilema este: senhas são para serem esquecidas. Por isso a guardamos. Em lugares tão díspares, que não lembramos quando queremos. Aí então, vem pra cá e senta, Pam. A curativa e prestativa, a maravilhosa exemplar feminina na mente de um homem.

PAM, de Irvin Yalom.
Schopenhauer dizia que as mulheres muito atraentes, assim como os homens muito inteligentes, estavam destinados a viver isolados. Porque os outros ficavam cegos de inveja e de raiva da pessoa superior. Por isso, esses dois tipos não tinham amigos íntimos do mesmo sexo. Mas Pam era diferente: linda, e com muitas amigas íntimas do mesmo sexo. Firme, dura, a pessoa mais inteligente que muita gente já tinha encontrado. Mas tinha problemas com os homens: tem raiva deles. De todos. A durona no Amor. A Juíza do Supremo. Pam era a grande força no grupo de terapia. O casamento e o caso amoroso tinham acabado ao mesmo tempo, ela tinha ficado irritada com os dois, e por mais que o grupo tentasse, nada a ajudou. Desesperada ela decidiu ir para a Índia procurar um famoso guru num centro de meditação Budista. Para Pam, o mais importante no momento era obter tranqüilidade. Sua mente, nos últimos tempos tinha sido um campo de batalha onde lutava para afastar as lembranças e fantasias barulhentas, obsessivas e invasivas sobre o ex-marido e o ex-amante.

Sete anos antes ela havia procurado um ginecologista quando engravidou de um parceiro eventual, e resolveu fazer um aborto. O ginecologista foi muito amável, gentil, cuidadoso no seu acompanhamento, e após a cirurgia, telefonou para sua casa, e convidou-a para almoçar, ocasião em que de paciente, passou a namorada. Esse namoro havia progredido com rapidez incrível. Nenhum homem jamais havia entendido-a tão bem, ele era tão solidário, conhecia cada pedacinho e detalhes dela, e lhe proporcionava muito prazer sexual. Embora com muitas qualidades maravilhosas (competente, charmoso, inteligente), ela percebia que havia lhe dado uma dimensão heróica, enorme. Ficara surpresa por ter sido “a escolhida”, promovida à primeira na fila de mulheres que batiam no seu consultório, e apaixonou-se perdidamente, aceitando se casar depois. No começo, o casamento perfeito Mas na metade do segundo ano apareceu a realidade de ter um marido mais velho vinte anos: ele precisava descansar mais; e percebeu que ela também começou a envelhecer, e a perder sua identidade. Ela se sentia durante o casamento acelerando o processo de envelhecimento, o tempo, e isso irritava sua juventude. Todas as noites ele chegava em casa, com disposição para os mesmos programas, virou rotina. Tédio. O pior era que ele não lia nada, embora um dia tivesse falado com fluência e segurança sobre literatura. Como ela tinha gostado de saber que seu marido gostava dos mesmos livros que ela. E que choque ver depois que tinha confundido forma com conteúdo: não só as informações sobre literatura eram decoradas, mas tinha poucos livros, não se interessava por novos. Foi a essa altura que entrou em cena o amante: professor-assistente no mesmo departamento que ela, carregado de livros, pescoço longo e bonito, lia tudo, desde autores do seu século até outros que fugiam de sua especialização. A amizade deles aumentou com as visitas a todos os lugares e programas românticos do campus: reuniões no departamento e almoços do Clube de Professores, palestras mensais no Auditório, e foi se enraizando e florescendo em atividades acadêmicas, como dar aulas em dupla sobre grandes pensadores ocidentais, ou para um dar palestra no curso do outro. A ligação definitiva foi na guerra das discussões – estavam sempre do mesmo lado. Em pouco tempo, confiavam tanto na opinião recíproca sobre romancistas e poetas que não precisavam mais de outras; o correio eletrônico vivia abarrotado de citações filosóficas. Desprezavam textos que fossem bonitinhos ou pretensamente inteligentes; queriam apenas o máximo: beleza e sabedoria através dos séculos. À medida que aumentava a pilha de livros que tinham lido, a relação ficava mais harmoniosa. Emocionavam-se com os mesmos pensamentos dos mesmos escritores; juntos tinham epifanias. Em resumo, dois professores de inglês perceberam-se apaixonados tempos depois. “Você larga seu casamento, e eu largo o meu”.

Quem disse essa frase? Ela nem se lembrava de que alguém a tivesse pronunciado. Mas a certa altura, chegaram a esse compromisso de alto risco amoroso. Pam estava pronta, mas o amante tinha duas filhas pré-adolescentes e, naturalmente, pediu mais tempo. Pam teve paciência. Graças aos céus, seu amante era o homem dela, um bom sujeito, pedia tempo para lutar contra temas morais, como o sentido das juras de casamento. Lutava também com a culpa de abandonar as filhas, e como fazer para largar uma mulher embotada, mãe sem graça. Os meses se passavam, e o amante não chegava à definição nenhuma. Pam desconfiou que ele, assim como tantos maridos e mulheres insatisfeitas, tentava fugir da culpa e do peso de atos contrários ao moral e irreversíveis, fazendo com que sua mulher decidisse. Queria que ela pedisse a separação, para ser a vítima. Ele perdeu todo o interesse sexual pela mulher, a criticava, era o velho golpe do “não posso largar dela, mas rezo para que ela me largue”. Só que a mulher dele não caía no golpe. Finalmente, Pam agiu. A decisão foi apressada por dois telefonemas que lhe contaram o que seu marido andava aprontando. Com a desculpa de ser médico, ele estava investindo em pacientes. Pam agradeceu sua boa estrela, e ligou para o advogado, esperando que com isso seu amante tomasse uma decisão. Até que um dia o amante resolveu. Após um fantástico encontro de amor no lugar de sempre, ele a olhou, sério e disse: “Eu a amo, e porque amo decidi ser firme. Não estou sendo justo contigo, e resolvi tirar um pouco da pressão sobre você, principalmente, mas sobre mim também. Temos de passar um tempo sem nos vermos”. Pam ficou atordoada. Mal ouviu o que ele dizia. Uma hora ela o amava, em outra o odiava. Com isso entrou num grupo de análise e terapia, mas essa crise o tratamento não conseguiu resolver: vencer o enorme poder do pensamento obsessivo.

Nos dias que se seguiram na Índia, difíceis e em total silêncio meditativo, conseguiu finalmente limpar a mente. Mas não se encontrava animada. Algo toldava seus pensamentos, e enquanto pensava nesse enigma, adormeceu e acordou logo após, pensando num sonho estranho: uma estrela de perninhas, cartola, e bengala sapateava no palco de sua cabeça. Uma estrela bailarina. Sabia exatamente o sentido do sonho. De todos os aforismos literários que ela e o amante apreciavam, um dos preferidos era a frase de Nietzche em Zaratustra: “É preciso ter o caos dentro de si para dar origem a uma estrela bailarina”. E aí entendeu a ambivalência que sentia em relação à meditação. O guru havia cumprido o que prometera: lhe dera calma, tranqüilidade, ou como costumava dizer, contrapeso. Mas a que preço? Se Shakespeare tivesse praticado essa meditação Vipassana, teria escrito o Rei lear ou Hamlet? Alguma obra-prima da cultura ocidental teria sido escrita? Lembrou dos versos de Chapman: “Nenhuma pena pode escrever nada de eterno, se não for mergulhada na tinta das trevas”. Essa era a tarefa do grande escritor: mergulhar no sentimento das trevas, aproveitar a força da escuridão para criar. Senão, como os sublimes autores malditos (Kafka, Dostoievski, Virginia Woolf, Hardy, Camus, Plath, Poe) teriam iluminado a tragédia da condição humana? Não foi por saírem da vida, nem ficarem assistindo parados a vida passar.

Pam não tinha nada contra o ensinamento do guru. Embora soubesse pouco sobre o Budismo, tinha lido sobre as 4 verdades: a vida é sofrimento, o sofrimento é causado por apegos (a idéias, pessoas e a própria vida); há um remédio para o sofrimento: a cessação do desejo, do apego, do eu; Há um caminho para uma vida sem sofrimento: os oito passos da revelação. Pensou novamente nisso, olhou em volta, as pessoas tranqüilizadas, satisfeitas com suas vidas dedicadas a varrer a mente com a meditação. Será que o remédio não era pior do que a doença? Na madrugada do dia seguinte, ficou ainda mais em dúvida ao ver o grupinho de mulheres da seita jainista a caminho do banho. Os jainistas levaram a extremos a ordem de não matar: andavam devagar e cuidadosos como caranguejos, pois tinham de afastar o cascalho para não pisar num inseto, e mal conseguiam respirar com as máscaras de gaze, que usavam para não inalar qualquer minúsculo inseto. Para todo canto onde olhava, Pam via renúncia, sacrifício, limitação e resignação. O que foi feito da vida? Da alegria, do entusiasmo, da paixão, do “aproveite cada dia?” Será que a vida era uma tal angústia que deveria ser sacrificada em nome da calma? Talvez aquelas verdades fossem verdades adequadas há 2.500 anos antes, num lugar oprimido pela pobreza, superpopulação, fome, doença, opressão das castas e falta de esperança num futuro melhor. Mas seriam verdades para ela, agora? Será que Marx não estava certo? Será que todas as religiões fincadas na libertação ou numa vida melhor depois da morte não visavam os pobres, sofridos e escravizados?

Após dias de silêncio absoluto, Pam começou a falar muito consigo mesma. A descrença atrapalhava agora a meditação. E de repente viu tudo claramente: Seu ex-marido, uma grande criança, os lábios grossos querendo sugar qualquer bico de peito ao seu alcance. E seu ex-amante, fraco, pobre, pusilânime, que vivia no sim e no não ao mesmo tempo. Todos covardes. Covardes morais. Desde o primeiro da fila, namorado bobão da adolescência, que deixou de freqüentar uma boa universidade longe, para ficar numa mais próxima aos pais; um eterno professor-assistente, resignado com sua situação veio após, seu ex-marido falso, cheio de conquistas baratas e falas decoradas; o ex-amante covarde demais para ficar com ela e largar um casamento que já tinha acabado. Nenhum deles a merecia. Puxou a descarga neles, uma enorme privada! Gostou da imagem.

E aí lembrou do filha-da-puta de um professor, que havia lhe tirado a virgindade, causado ruptura numa amizade de longos anos com sua prima, para sempre. Interessante, bonito, inteligente, um jeito de fazer sexo, muito tesão, fazendo o que ela queria, arrancando suas calcinhas, sufocando-a com todo aquele corpo. Falando sério: ela tinha adorado. Um intelectual, com vasto conhecimento da história do pensamento ocidental, além de ótimo professor, talvez o melhor que ela tenha tido. Mas havia sido o grande sacana da sua vida: tinha largado dela, após alguns encontros. Sem motivos. Gostava de gente que abraçava a vida, e se irritava com pessoas que encolhiam frente a ela. Pam podia ter gostado desse sacana, porque foi o homem mais bonito e interessante que tinha conhecido. Ligou e escreveu várias semanas para ele, depois que ele não quis encontrá-la mais. Ela sentiu de todo coração que podia tê-lo amado. De verdade.

Percebeu que com isso vinha em letras graúdas o que deveria ser sua meta: viver a vida intensamente, no presente, cheia de desejo, paixão e Amor. Sem perder a identidade. Sem perder nenhum minuto a mais... Porque era isso que a preenchia.

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