segunda-feira, dezembro 19, 2005


ponto de sombra.

Eu sempre gostei de terminar tudo. Com um ponto final, sem deixar reticências. Talvez por gostar de começar do zero, de viver e não sobreviver... Porque eu sei o quanto a vida é êfemera. E acredite que o Outro também deva ter essa conscientização; eu não posso ser olhos, ouvidos ou ponto de história para ninguém. Mas posso servir de Anjo, cuidar e mostrar o caminho, indicar as luzes e insinuar, entre muitas cores, onde está aquela que o preenche. Um dia eu escrevi algo "especial", e nem sei se foi lido... também não me incomoda mais a falta de interesse, ou a subjetividade e mentira por trás das justificativas. Há pessoas que temem dizer o que sentem; que tem dizer a verdade com medo de magoar; e terminam machucando muito mais ocultando enigmas e expressando mentiras veladas. E arrematando o ano com um laço, bem grandioso e digno de Amor, evoco o melhor momento. Através de pontos de sombra...

Certa tarde, daquelas chuvosas onde sua alma está triste e o coração amargurado, recebi uma mensagem - e decidi fazer algo que não tinha feito. Dizer a alguém o quanto ele tinha sido especial antes do acontecimento extraterrível; que não sabia distinguir qual era a pessoa que eu havia conhecido: se a de antes, cheias de palavras, ou a do depois, cheia de "falta de ações". Confessei minha mágoa, e não lembro se disse que não o perdoava por eu ter sido enganada e desrespeitada, assim, num zumpt-zapt, num estalar de dedos e esmagar de razões supremas. Kant adoraria fazer uma análise sobre a falta de princípios do ato. Eu, hoje, não busco e nem quero mais nada: apenas me desvencilhar do ano que passou e do momento que ficou, preso a esta pessoa.

Todos sabem que a vida não é eterna, que nossa passagem por aqui é rápida. E tudo o que hoje é rotina, amanhã de repente, não é mais. Mas alguns não tomam conhecimento dessa efemeridade, com medo de viver, porque já se acostumaram a sobreviver. Sobreviventes não sofrem tanto, e nem perdem mais nada, porque não se entregam a nada, a não ser a eles próprio. Se Ele soubesse o valor de cada momento que surge em nossa vida, talvez pensasse duas vezes antes de jogar fora oportunidades de "ser e fazer" alguém amado e feliz; e deixar de depositar vãs ilusões em cima de pessoas que "são cenas trágicas de cinema" - pura ilusão de ótica. Saberia apostar no azarão, porque na perda muitas vezes a gente ganha tudo. Quem sabe prestaria atenção àquela pessoa que surgiu do nada, e valorizava as palavras e ações. Mas o tempo... ah, o tempo, só ele sabe o momento certo.

Gosto de imaginar que nosso relacionamento, como uma flor, foi colhido cedo demais. Em botão. Que por um tempo Ele sentiu algo por aqui... Porque racionalmente sementes nunca vão brotar, flores precisam de sentimentos para viver a vida inteira. Olhando para trás e vendo, pétala por pétala, aquilo que acreditei ter virado vento e possivelmente pó, tento crer que foi por algum motivo especial. Porque há pessoas que não sabem adivinhar, nos olhos de uma pessoa, onde elas se encontram. Muito menos conseguem olhar na palma dessa pessoa sua vida ali, cruzada e bem marcada. Jardineiros descuidados, apressados em tomar decisões, peritos em lógica racional. Deixar para trás algo que não foi o que esperava é normal, já que "deve ter tido todos os seus sonhos atendidos" como mágica, no momento que ousou pedir. E assim, se privou de expressar aquilo que jamais teve chance de expressar; e também deixou de viver o que sempre pediu e buscou. Eu me calei, quando deveria ter dito, com muita raiva, o quanto estava insatisfeita em saber que a coragem e o amor que eu presumia que havia por ali se evaporavam a menor fumaça de discussões ou contradições.

Contudo, o tempo passa. E se o abraço e o olhar se foi, a vida não pode me cobrar por perder uma oportunidade. Eu fiz tudo o que me era possível fazer - mais seria invadir um território que é sagrado, a sua intimidade. Tem uma autora portuguesa, Maria Filomena, cujo livro tem como título "ponto de sombra". Ponto de sombra era um tipo de bordado, famoso em Portugal, cruzado, feito pelo avesso, em tecido transparente, fazendo com que a linha seja somente delineada pelo direito. Minha avó era mestra nessa arte; e Ele é a descrição perfeita desse tipo de bordado. Poderia começar a chamar esse momento de olhar, onde me descobri dentro de outro alguém, como "Ponto de sombra". Porque começamos pelo avesso, contando tanta coisa escusa e mal-versada, retiramos as mentiras e prometemos enveredar somente pela verdade, para evitar desenhos enganosos no direito. Omitimos certos defeitos que nos machucavam, à época, muitos ainda agora presentes.

O que quero, nesse final de linha, é, embora assustada pela dimensão do que um momento e uma pessoa pode trazer a uma vida, desvencilhar-me dessa história. Porque quero aceitar que Ele seja uma daquelas pessoas pouco curiosas em olhar para o Outro, que não percebem o que jaz dentro de cada um, e contentam-se apenas com aquilo que o fato mostra: "um bordado linear, harmônico, sem saber que, por baixo daquilo, esconde-se uma trama dócil e amorosa". Digamos que eu passei muito tempo tecendo esse bordado, e agora quero passar para o outro lado, enredada nas linhas do avesso. Quero alguém que ouse ver minha transparência, mesmo eu estando completamente vestida. Porque não sou um fato, ato ou momento: sou uma série de dias cruzados, felizes e amorosos. Nada de teorias: a coisa aqui é simples - basta, mesmo em meio a completa escuridão, jamais se desvencilhar da minha mão, e sempre confiar em mim. Não precisa entender o porquê, nem necessita procurar justificativas, apenas necessito que me ame, a ponto de se jogar para trás, esperando que eu esteja atrás, pronta a lhe sustentar. Porque eu posso, a primeira vista, não ser tudo aquilo que você enumerou, listou e colocou como "prioridade" - porém, tenho certeza de que seria capaz de solucionar a única procura que você anseia: a sua busca em ser amado e amar pra vida inteira.

Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer. Pois não esquece. Isto até quando? Só tenho por consolação, que os olhos se me vão acostumando... À escuridão.*

*Fernando Pessoa.

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