domingo, agosto 21, 2005


Retrato em dó:.


Tenho horror a tudo que cheira a falsidade e escamoteação. Foram as palavras que Tia Clotilde dirigiu a seu noivo, logo que o avistou no cais. Embutida em um moderno terninho roxo, reticente e cheia de incertezas, achava que tudo podia mudar e se alterar na vida, e deveria estar pronta para zarpar. A única essência que acreditava era a base imutável de seu destino: sabia ler as mãos desde o começo de seus anos, angariando fama de feiticeira e sábia, pois via o avesso das pessoas, a sombra que teimavam em ocultar. Ali, sozinha, esperando-o desembaraçar de sua bagagem, já foi logo avisando-o: Uma mentira, e você volta para outro porto, para outros mares. O moreno fez cara de poucos-amigos, dizia que era sério e jamais falava inverdades, digno sempre de confiança. Ela nem deveria fazer estas observações cruciais: qual era a lógica em se duvidar de uma pessoa idônea? Ah, Clotilde riu muito alto, não havia lógica em seu mundo, apenas intuição. E algo em sua mao lhe alertara para um trecho de dúvidas e obstáculos. Se ele quisesse, considerasse. Era preciso fazer render o instante em que ele podia deter-se ali, e mesmo ela sabia a hora de calar-se, e ajeitar-se em seus braços. Lavou os olhos cheios de lágrimas de felicidade, despejou-se inteira naquela boca. Depois analisaria em que linha do destino aconteceria o reencontro. Porque ela sabia que a vida lhe tinha destinado aquele homem. E o que era seu, preservava com força e amor. Jurou amá-lo na terra, no mar, no braseiro, na neve, debaixo da ponte, e na cama onde faziam amor. Viu as estrelas e compartilhou a lua. Antes, as pequenas palavras, pequenos gestos, agora esta imensidão de gozo e convivência breve. Talvez ainda tivesse, Clotilde sorria ensimesmada, "medo de se encontrar", quando ainda tão ardentemente se buscava. Porque sabia que logo Ele zarparia, e o que sobraria do Amor profundo, senão o retrato em dor?

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