sábado, junho 04, 2005


.:Paixão:.


Dias antes comprara “Flora” na livraria da esquina. Era um romance que estivera procurando há meses, e rejubilava-se por finalmente estar em suas mãos. Nessa tarde, após o pandemônio que enfrentara, chegou em casa sedento de amor, à procura de abrigo nos personagens já familiarizados. Gostava de lentamente deslizar na sua poltrona de veludo verde, e ir, linha após linha, aprofundando-se na história, enveredando-se pela floresta da trama. Tremelicava de frio quando buscou esse aconchego, na harmoniosa parte do seu quarto que havia reservado para esses momentos. Sua mão percorria a capa, onde havia a pintura de Titian, aquele mesmo quadro que, emoldurado, estava acima de sua cama. Uma cópia do olhar que tanto lhe lembrava o amor que havia passado por sua vida, e ido, como um furacão...

A verdade é que Tróia havia pegado fogo, e na confusão, haviam se perdido no corredor, peça vazia do fundo dos dois. O que estou contando começou vá se saber quando, mas as coisas mudaram no dia em que o primeiro papelzinho caiu do trem. Naturalmente que as poses e palavras eram aleatórias demais, fantasia pura, não eram para eles mesmos e somente serviam para preencher seus espaços vazios. Contudo, o aborrecimento adveio: de um trem andando as coisas se vêem como se vêem, cada qual com seu panorama e suas profusas histórias, mas lhe parecia hoje que estiveram se aproveitando demais da vantagem que pensavam haver sobre os dois. O que podia ele dizer? Sabia nesse momento que, em qualquer página futura podia estar a sua espera uma nova pagina passada, como se ficasse algo por dizer do ciclo que acreditava anterior, ou como se, depois de haver tirado todas as gravatas velhas para agradar a amada no dia das bodas de prata, descobrisse que pusera, que horror!, a gravata de bolinhas presenteada por aquela noiva que depois não se casou. Com isso consolava-se, ao ver-se completamente atolado pelas lembranças do que fora, pois que entremeadas fortemente às páginas do romance que estava lendo.

E notou que se encontrava aquecido: a paixão e o amor tórrido dos dois amantes, personagens centrais do livro, tinha servido para aquecer-lhe o coração há muito desprovido de emoções. Lembrou-se das borboletas no interior... Piegas, profundamente! Seus olhos continuaram percorrendo com cuidado as palavras tão próximas da descrição daquilo que um dia experimentara - “toco em você, na penumbra do amanhecer, e é quase doce passar a mão por seu ombro, que estremece ao toque. O lençol que lhe cobre pela metade desliza suavemente, meus dedos começam a descer pelo terso desenho de sua garganta, e inclinando-me, respiro seu hálito que cheira a noite... não sei como, meus braços enlaçam você, ouço uma queixa enquanto você arqueia a cintura, tentando negar o que tanto desejo, mas os dois conheciam muito bem esse jogo para acreditar nele. É preciso que você me abandone a boca, que arqueja titubeante palavras soltas e desconexas, Horácio implorava...” - Pausa na leitura, o livro sobre suas pernas. Parecia-lhe que o fantasma estava ali, nas entranhas, e provocava nele um instante sofredor com a volta da conhecida dor de barriga, não aquela que o levaria ao banheiro, outra. Sabia que tudo que podia fazer era senti-la e que depois tudo se acalmaria. Já estava acostumado às cólicas daquele amor fracassado. Sim, parecia-lhe que ainda via Ela dizendo não sei o que, e que lhe importava se ela havia ido, se caminhava hoje pelas ruas, apressada, pensando neles ou em nada? Ou se ela havia lhe feito rir ou chorar, à época, com suas trágicas determinações, aquele seu jeito de andar querendo bater todas as portas do mundo, como uma atriz provinciana...

Tudo era tão distante da sua rotina de casamento, das chantagens repugnantes de sua esposa, que acreditava que detinha posse e direito adquirido sobre ele. Será que sua Senhora e Ama cria realmente que alguém pestanejasse por suas ameaças, suas inesgotáveis cenas patéticas, untadas de lágrimas e adjetivos e histórias mesquinhas, cheias de começos com a palavra eu? Deveria ter-lhe dito há tempos que, como marido, ela merecia alguém bem dotado para réplicas. Ele escolhia sempre o silêncio, acendia um cigarro e ficava inerte, ouvindo as queixas e desaforos daquela com quem se casara. Em dias de muita sorte, ia adormecendo, embalado por suas críticas e choramingas. E em sonhos, sentia que ela se ia, e quem entrava pela porta era aquela que um dia veio e levara seu coração. Talvez se ele tivesse dito a Ela algo como quisera muito viver em conjunto a vida ao extremo, ela lhe perdoasse. Porque enquanto pode, ele caminhou até o limite, na corda bamba, através de todas as sensações vívidas, de todas as formas de energia exteriorizadas. Mas não conseguiu prosseguir adiante: teve medo de perder sua segurança, seu caminho percorrido, seu eu. A verdade era que temia com verdadeiro pavor mudanças radicais e bruscas, estas lhe estagnavam a alma, fazia com que ficasse em suspenso da vontade, da emoção e do pensamento... O hábito de viver a vida sem ter dias muito felizes o fez retroceder muitas vezes, a costumeira indecisão laçava-lhe, e as palavras e os gestos continham-se dentro de si. Os outros há muito tempo haviam lhe podado as asas, e muitas tentativas foram feitas para se exprimir pelos vãos daquele enorme apartamento, em busca de si, alguém que já estava tão longe... Agora não havia mais tempo: era final de jogo.

Voltou a leitura, tentando se concentrar, e fazer com que a parte liberta de si parasse de clamar por ela. Deixara de ser ele, num de-repente, e se dispersou entre as páginas, percorrendo-as sôfrego, como que abdicando do que era, para se tornar aquilo que gostaria de ter sido. A história de Flora lhe fazia chorar as coisas impensáveis que sonhara, as ternuras dos momentos inexistentes que fantasiara e ansiara, e as grandes dúvidas que lhe assoaram naqueles tempos voltaram, deixando-o arrepiado quanto ao seu futuro de não-sei-o-que-fazer-nem-sei-o-que-pode-acontecer. Sucumbia novamente às vozes dos heróis, deixando-se levar pelas imagens que se formavam através da narrativa. Tudo evocava agora o perfume e o olhar firme daquela que se fora, e foi assim, nesse estado de ansiedade mental e emocional que se tornou testemunha do último encontro entre Flora e Horácio.

“Ela havia estancado admiravelmente as lágrimas que teimavam em descer pelo seu rosto formoso, diante da recusa dele em receber suas carícias. Não viera para repetir as cerimônias do amor que existia entre os dois, e num diálogo envolvente corria pelas páginas como um riacho de serpentes, sentindo que, tal como no livro, sua história estava fadada desde o início ao mesmo destino. Começava a anoitecer, e Flora já sem olhar, abriu a porta e se foi: ela devia continuar pelo caminho que ia ao Norte. Do caminho Oposto, Horácio ainda se voltou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu por sua vez, esquivando-se de árvores e cercas, até distinguir na rósea bruma do crepúsculo a alameda tão conhecida...”

O barulho da porta sendo aberta vagarosamente despertou-lhe da leitura, mas não elevou sua cabeça, continuou firme e determinado a não se envolver com nada que o tirasse da leitura. Daquela mulher que sorrateiramente aparecia, a única coisa que esperava era que pudesse continuar sua vida, como sempre fez – vivendo de ilusões, sem cobranças, sem sentimento. E se era assim que tinha que ser, que ela o deixasse em paz em seu recinto, e permanecesse sem adentrar em seu quarto, apenas espionando-o da entrada, como sempre fez... Contas de vidro, jogo de Azar.

Havia perdido muito; mas sabia que sua vida também era composta de vitórias. Um dia, quem sabe, aquele adeus poderia ter outro sentido. Hoje, ele sabia: era irreversível. Fadado. Desconstruído, era assim que se sentia, tendo tido “Flora” nas mãos e não podendo viver sua história... Lenta e gulosamente passava a língua pelos lábios, que outrora sorrira demasiadamente. Tudo o que o alimentara foram palavras, e agora, triste sina, de palavras sobrevivia, não havia como ser outro, teria que viver sua tola vida fracassada até outra tola vida fracassada, até outra...

Não se preocupe, era o que seu íntimo queria dizer bem alto. Bramia interiormente tolices do tipo “Desculpe-me pelos gestos de impaciência, tente entender que é perfeitamente natural eu me lembrar de nós em horas como essa, cheias de saudade, quando “Flora” me corrompe pela ausência de paixão na minha vida, e me deixo remendar com palavras e imagens esse tanto de vazio que há dentro de mim, e que jamais consegui preencher, a não ser brevemente com você”. Em interlúdios de tempos, relatos como esse, com um fundo de água, o uísque ao lado haviam lhe dado prazer, contudo essa forma de passar as horas parecia-lhe, momentaneamente, uma preferência condenativa, recriminativa. Um ato seu, sabia, poderia lhe trazer esperança, quem sabe se mandasse tudo ao diabo?, mas faltava-lhe coragem para, nesta altura de sua vida, pensar em viver, quando tudo o que sabia era sobreviver desde pequeno. Não havia como virar a moeda, hoje ele era um axolote, não lhe agradava se mexer muito, o aquário dentro dele era tão pequeno; mal avançava um pouco, e se chocava com o rabo da feiticeira que lhe fazia prisioneiro, surgiam dificuldades, brigas, fadigas. Sentia menos o tempo se ficava quieto, as pontes tinham sido cortadas, foram lançadas todas as ligações e elos ao mar, por ela, sem pestanejar, e era sábio o suficiente para entender que o desejo estava submerso, nas águas do Tejo. Chorava nesse instante, e já nem sabia se era pelo triste final de “Flora’, ou pelo exílio de si...


Creio eu que Julio Cortazar não se incomodaria em emprestar suas palavras, se soubesse que esses meios pudessem atingir fim certo, afastando todo o mal que porventura ousou sair da caixa de Pandora..

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial