quinta-feira, junho 02, 2005


.:O Amor finda com a Morte:.

O lado Fatal

Quando meu amado morreu, não pude acreditar: andei pelo quarto sozinha repetindo baixo: "Não acredito, não acredito." Beijei sua boca ainda morna, acarinhei seu cabelo crespo, tirei sua pesada aliança de prata com meu nome e botei no dedo. Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso. Muita gente veio e se foi. Olharam, me abraçaram, choraram... todos com ar de uma incrédula orfandade. Aquele de quem hoje falam e escrevem (ou aos poucos vão-se esquecendo) é muito menos do que este, deitado em meu coração, meu amante e meu menino ainda.

Deus - (ou foi a Morte?) - golpeou com sua pesada foice o coração do meu amado - (não se vê a ferida, mas rasgou o meu também). Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado, disse bem alto meu nome no quarto do hospital, e partiu. Quando se foram também os médicos e suas máquinas inúteis, ficamos sós: a Morte (ou Deus?) o meu amado e eu. Enterrei o rosto na curva do seu ombro como sempre fazia, disse as palavras de amor que costumávamos trocar. O silêncio dele era absoluto: seu coração emudecido e o meu, varados por essa dourada foice. Por onde vou, deixo o rastro de um sangue denso e triste, que não estancará jamais.

Insensato eu estar aqui, e viva. O rosto dele me contempla vincado e triste no retrato sobre minha mesa; em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz. Insensato, isso de sobreviver: mas cá estou, na aparência inteira. Vou à janela esperando que ele apareça e me acene com aquele seu gesto largo e generoso, que ao acordar esteja ao meu lado e que ao telefone seja sempre a sua voz. Sei e não sei que tudo isso é impossível, que a morte é um abismo sem pontes (ao menos por algum tempo). Sobrevivo, mas pela insensatez..

Pensei que estávamos apenas no começo: a casa mal-e-mal nos alicerces. Mas provavelmente estava concluída e eu não sabia. Tínhamos erguido em nossos poucos anos as paredes necessárias; o telhado se inclinava ao jeito certo, e havia vidraças nas jjanelas. Éramos felizes ali dentro mesmo com as tempestades de fora.) Tudo se construiu num lapso tão curto: até a porta de entrada, por onde ele saiu casualmente como quem vai comprar jornal. A porta está apenas encostada embora pareça alta, dura, intransponível: do lado de lá, o meu amor vê as maravilhas que tanto nos intrigavam nesta vida. Tanto escrevi sobre a morte em livros e poemas nesses anos: sempre achei que a entendia um pouco. Mas agora que ela me dilacerou a vida, me rasgou o peito, me levou o amado, sinto que mal começo a compreender sua mensagem: tirando-o de mim, a morte o devolve para que seja mais meu. Dentro de mim um quebra-cabeças, e nele o meu amado. Nem Deus o tirará daqui.

O meu amado morreu: viver sem ele, como dói. Não tivemos filhos juntos, nosso passado foi tão breve que era sempre presente. Um dia ele mandou fazer um par de alianças de pesada prata, parecendo antigas; gravou apenas nossos nomes, sem data, e disse: "Somos um só desde sempre." Ainda não acreditei em sua morte, e talvez isso me salve por enquanto. Levantar-me da cama cada dia é um ato heróico, acender o cigarro, atender o telefone, tomar café. Mas faço tudo isso: falo, ando, recebo visitas. Compro móveis para a casa onde moro sem ele, imaginando: será que ele vai gostar?

De algum secreto lugar me vem a força para erguer a xícara, acender o cigarro, até sorrir quando alguém me diz: "Você hoje está com a cara ótima", quando penso se não doeria menos jogar-me de um décimo-primeiro andar. Amado meu, agora morto, postado do lado de lá da fronteira que nos seduzia, mudo e quedo como se não existisses: eu sei que existes, intensamente, ardentemente existes, feito e desfeito no fogo de um amor maior que o nosso mas que nos abrange. Amado meu, morto agora e para sempre vivo, hás de ter ainda o intenso olhar que me entendia, as curvas amorosas da boca que chamou meu nome, as belas, inquietas mãos que ardiam nas minhas. Ajuda-me agora, silencioso que estás, a suportar a sobrevida e a decifrar esse alto, intransponível muro que me cerca.

Nunca tivemos filhos juntos, e ele reclamava: "Nosso amor merecia um filho ao menos." Nosso filho é a minha dor de hoje, é a fulguração que nos deixava tontos, é o novelo da memória que teço e reteço nas minhas insônias. Nosso filho é o meu tempo de agora para falar do meu amado: da sua força e sua fragilidade, da sua indignação e seus prantos, da sua necessidade de ser amado e aceito como finalmente deve estar sendo, por inteiro, na realização de todos os seus vastos desejos. O meu amor enveredou por sua morte como quem vai a um encontro de amor: impaciente. Deixou-me este coração golpeado, esta derrota. Mas também ficou a claridade desses anos e a sensação de que ele finalmente vive o encontro de amor que toda a devoção de minha vida não lhe poderia dar. (Um dia, celebraremos juntos.)

Se me tivessem amputado braços e pernas e furado o coração com frias facas e cegado meus olhos com ganchos e esfolado a minha pele como a de um podre bicho - nada doeria mais que te saber morto, amado meu, depositado nesse irremediável poço de silêncio de onde não respondes. (A não ser em sonho, quando me olhas e tuas mãos tocam as minhas espalmadas, abertas, feridas, vazias.)

O meu amado morreu: preciso viver sua morte até o fim. Morreu sem que se instalasse entre nós cansaço e banalidade. Talvez tenha morrido na medida certa para nada se desgastar. Dele me vem a dor, mas também a ternura, a claridade que me permite ver em todos os rostos o seu rosto em todos os vultos o seu vulto, e ouvir em todos os silêncios o seu inesperado riso de criança. Estranha a vida: fico tangendo meus dias como um rebanho de ovelhas desordenadas nessa triste e fria cidade de Porto Alegre onde ele gostava de estar olhando o pôr-do-sol e vendo amigos.

"Morrer é tomar um porre de não-desejo" dizia o meu amado, que era um homem desejoso: desejava a vida, desejava a morte, desejava a justiça, desejava a eternidade e a paz. Estranha a vida: quando releio uma frase sua, "viver é modular a morte", em sangue e dor preparo a minha ida. Estranho também esse amor, com hora marcada para a mutilação da morte, o minuto acertado, e o fim consultando o relógio para nos golpear. Estranho esse amor de agora, com meu amado atrás de um espelho baço, onde às vezes penso divisar seu vulto como num aquário. Enrolado em silêncio, mais que nunca o meu amor comanda a minha vida.

Não falem alto comigo: andem sempre na ponta dos pés. Principalmente, não me toquem. Finjam que não vêem se tenho um jeito absorto, se nem sempre entendo as perguntas com a rapidez de antigamente, se pareço fatigada e sem graça como nunca fui. Façam silêncio ao meu redor. Não me interessa nada o cotidiano nem o místico. Não quero discutir o preço do mercado, nem os grandes mistérios da eternidade. Levo meu amado no peito como quem carrega nos braços para sempre, uma criança morta.

Amado meu, que tanto ensinaste de mim a mim mesma, e do mundo a quem o conhecia pouco: quando se desfizer escura a noite desta perda, quero enxergar pelos teus olhos, amar através do teu amor as coisas que me restaram. Amado meu, vivo em mim para sempre, apesar da ruga a mais e do olhar mais triste, devo-te isto: voltar a amar a vida, como agora amas, inteiramente, a tua morte.

Lya Luft

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